domingo, 3 de agosto de 2008

Reforma Política e Participação

De início, é importante pensar sobre os antecedentes e significados da Reforma Política em pauta no contexto político brasileiro. Neste sentido, esta merece ser compreendida como um processo que remonta ao conjunto das Reformas de Base colocadas pelo Governo João Goulart, interrompidas pelo Golpe Militar de 1964.

No período ditatorial, as alterações no sistema político eleitoral e partidário foram plenamente casuísticas, com o objetivo de impedir o avanço e as conquistas das forças de oposição, destacando-se: a implantação do bipartidarismo, que prevaleceu de 1965 a 79; a instituição da fidelidade partidária por lei; e a criação dos mecanismos do domicílio eleitoral e do prazo de filiação partidária, os quais se encontram em vigor até hoje.

A redemocratização no país começou a reverter a situação emergindo como grande marco o processo Constituinte com a promulgação da nova Constituição Federal, em 1988. Nomeada de Constituição Cidadã, promoveu uma ruptura radical com o Estado de exceção e incorporou avanços legais substantivos, apontando para o aperfeiçoamento da democracia em suas diversas feições.

Entre as conquistas asseguradas especificamente no âmbito da participação política, destacam-se: o voto para as pessoas analfabetas; o voto opcional para jovens na faixa de 16 a 18 anos incompletos; a autonomia dos partidos políticos para definirem sua estrutura, organização e funcionamento, inclusive sobre normas de fidelidade e disciplina partidárias; e a criação de instrumentos de democracia direta – plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei.

Segundo Benevides (2003), estes instrumentos de democracia direta não devem ser compreendidos como oposição à democracia representativa e sim como manifestações que podem corrigir seus vícios e desvios. Aliás, as relações entre formas de democracia direta e democracia representativa constituem um espaço de reflexão da maior relevância e atualidade, observando-se que ambas são expressões de cidadania.

No rumo da ampliação da democracia, a legislação eleitoral brasileira incorporou importante dispositivo visando promover a participação política das mulheres e a redistribuição das oportunidades de acesso aos espaços de representação política. A legislação de cotas para mulheres foi adotada em 1995, sendo aperfeiçoada em 1997, ao adquirir um texto universal, qual seja: reserva de no mínimo 30 e no máximo 70% das vagas de candidaturas para cada sexo, nas eleições proporcionais.

O sistema de cotas, embora insuficiente para mudar a feição masculina do cenário político brasileiro, trouxe uma excelente contribuição, ao promover o amplo debate sobre a sub-representação política das mulheres e abrir espaços, efetivamente, para a participação feminina. Com a nova Legislatura, iniciada em 2003, e o novo Governo Federal, sob a Presidência de Luís Inácio Lula da Silva, a discussão sobre a Reforma Política foi resgatada, embora esteja longe de ser deliberada ainda neste ano.

Foi criada uma Comissão Especial da Reforma Política na Câmara dos Deputados, que aprovou um relatório, dando origem ao Projeto de Lei n. 2.679/03. A tramitação do projeto enfrenta dificuldades para avançar, em parte pelos dissensos partidários na base de sustentação do Governo, e em parte pela conjuntura das eleições municipais que acaba afetando os trabalhos parlamentares.

Em todo este processo, constata-se que a Reforma Política tem sido tratada por políticos, no âmbito do Congresso Nacional, e por cientistas, no âmbito da Academia. Até o momento, a discussão não se expandiu de forma significativa para cidadãos e cidadãs e para as organizações da sociedade civil, sendo urgente a realização de debates sobre o tema. Embora prevaleça a perspectiva de se pensar a Reforma Política como processo, espaço e oportunidade de ampliação e aprofundamento da democracia, persistem concepções formalistas, que buscam limitar e controlar as expressões de cidadania e de participação política.

Questões em pauta e algumas problematizações

Dentre as questões comumente elencadas na discussão da Reforma Política, duas têm sido objeto de maior atenção e constam do Projeto de Lei mencionado acima. A primeira diz respeito à regulamentação do financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, considerado como uma forma de ampliar e eqüalizar as condições de participação política e, paralelamente, de coibir a corrupção e o tráfico de influências. A segunda aponta para a adoção da lista fechada de candidaturas, como uma forma de fortalecer os partidos políticos, e, paralelamente, de esvaziar práticas personalistas generalizadas e a competição eleitoral interna nas próprias agremiações.

Se a primeira tem se mostrado mais consensual sob múltiplas perspectivas, a segunda, é polêmica no contexto brasileiro, ainda que predominante nos sistemas políticos em todo o mundo. Em algumas visões, a lista fechada e ordenada, apresentada pelos partidos e demandando de eleitores/as o voto partidário e não em candidatos/as, poderia acabar promovendo o fortalecimento de burocracias partidárias. Um dispositivo que caminha na contramão do aprofundamento da democracia é o mecanismo da cláusula de barreira, dispondo que, nas próximas eleições federais, os partidos políticos precisam ter 5% dos votos de eleitores do país para terem representação política. O projeto de Reforma Política na Câmara propõe a redução da cláusula de barreira de 5 para 3%.

Duas outras questões têm sido objeto de debates, mas não foram contempladas na atual discussão no Congresso: a adoção do sistema distrital e a correção na representação proporcional no país. No debate do sistema proporcional versus distrital, é reconhecido que: por um lado, o sistema proporcional garante um leque de representatividade e uma diversidade político-ideológica que não são viabilizados pelo sistema majoritário e, por outro, o voto majoritário proporciona uma maior interação e proximidade entre eleitores/as e suas respectivas unidades territoriais e os/as representantes eleitos/as.

Quanto à atual representação proporcional, destaca-se a existência de grandes distorções, uma vez que é garantida a representação mínima de oito deputados federais e limitada a representação máxima em 70 deputados por Unidade da Federação, gerando Estados super e sub-representados. A par dessas questões, gostaria de problematizar outras que possibilitam refletir sobre a democracia que se quer construir no Brasil. Uma primeira diz respeito à relação dos indivíduos com a prática política e que se traduz, no campo da discussão da Reforma, no tema do voto obrigatório.

Janeine Ribeiro (2003) observa que este talvez seja o único tema de interesse da população, que apresentaria uma simpatia pelo voto facultativo e o questionamento do voto obrigatório. Em sua reflexão, o autor analisa o voto como um direito público, como responsabilidade e vinculação com a coisa pública, observando que a cidadania não pode ser terceirizada. Chama a atenção para a necessidade de se transpor a ameaça da indiferença interna; do desinteresse/descaso pela coisa pública; e do investimento exclusivo no mundo privado ou na esfera íntima.

Assim, a discussão sobre voto obrigatório versus voto facultativo precisa considerar os afetos - rejeição, estranhamento, indiferença e indignação - que circulam nos processos de eleição de representantes para os Poderes Legislativo e Executivo, em todas as esferas. Estes afetos são passíveis de serem transformados em expressões de cidadania, de autodeterminação, de pertencimento, compartilhamento e engajamento em projetos públicos. Para tanto, coloca-se o desafio maior de construir a política como função nobre, ética, generosa, de investimento nos outros e em novas gerações, de construção de futuros (NOGUEIRA, 2001).

Este desafio é de todos e todas, de sujeitos individuais e coletivos e, particularmente das instituições públicas. Coloca-se, também, o desafio de se promover a ação política em todos os âmbitos: nos poderes do Estado; nos poderes da sociedade civil organizada; e nas formações partidárias, especialmente para que tenham vida para além dos processos eleitorais.Uma segunda problemática diz respeito exatamente ao questionamento do monopólio da representação política pelos partidos.

Existem algumas raras experiências, em alguns países, de abertura de espaços para o lançamento de candidaturas avulsas e de agrupamentos não partidários. Com este questionamento, não se trata aqui de promover o esvaziamento de partidos políticos, que têm uma função pública a desempenhar, contribuindo cada um, a partir de seus referenciais político-ideológicos, para a construção de projetos de sociedade.

Trata-se, outrossim, de abrir espaços para a criação de outras possibilidades; de invenções de organização, de expressão e representação política; de experiências que possam animar a vida política brasileira. Por fim, uma terceira problematização diz respeito ao monopólio da representação política pelos homens. É cada vez mais generalizado o reconhecimento de que a reduzida presença das mulheres na esfera da representação política é uma forte expressão da fragilidade e do comprometimento da democracia (BARREIRA et al, 2004).

O quadro de exclusão das mulheres desse espaço público é grave. Apenas 15 países apresentam uma participação de mulheres na Câmara Baixa, ou Câmara dos Deputados, superior a 30%. O Brasil encontra-se no grupo de 70 países com pior desempenho, inferior a 10%. Em âmbito legislativo estadual e municipal, o percentual de mulheres gira em torno de 12% e em âmbito executivo é bem abaixo. Este cenário foi amplamente destacado na IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995, que recomendou o seu firme enfrentamento, mediante legislação e políticas públicas, com ações afirmativas.

A partir de então, dezenas de países passaram a adotar o sistema de cotas por sexo/cotas para mulheres em suas legislações, e já somam 75 os países que adotaram algum tipo de legislação sobre a questão, representando 45% dos países que têm instituições legislativas. No âmbito da discussão da Reforma Partidária, o projeto em tramitação na Câmara incorporou ações afirmativas visando ampliar a presença das mulheres na política, ao propor duas medidas importantes: a destinação de pelo menos 20% do tempo de propaganda partidária gratuita na mídia para promover a participação das mulheres; e a destinação de percentual equivalente a 6% do fundo partidário para promover a formação e a participação política das mulheres. Estes dispositivos significam a regulamentação da utilização de recursos públicos e não devem ser compreendidos como interferência na autonomia partidária (RODRIGUES, 2004).

O projeto manteve o dispositivo de constituição da lista fechada com o mínimo de 30 e o máximo de 70% das vagas para ambos os sexos, a exemplo do que já ocorre para a constituição da lista aberta. Neste ponto, no entanto, é mister observar que na lista fechada, o sistema de cotas por sexo só é eficaz caso seja garantido o lugar de mulheres e de homens na ordenação da lista, impedindo que as mulheres sejam colocadas ao final da lista e não logrem eleger-se.

Dois exemplos que garantem iguais oportunidades são marcantes pela sua eficácia. A Argentina, primeiro país a adotar as cotas em lei eleitoral, em 1991, dispõe sobre a formação das listas fechadas de forma que não se tenha mais do que dois nomes consecutivos do mesmo sexo, e já apresenta 30% de mulheres no Parlamento. A França, primeiro país a se autonomear como uma democracia paritária, adotou o sistema da paridade, com alternância eqüitativa entre homens e mulheres na formação da lista, nas eleições municipais de 2001, chegando praticamente a meio a meio na representação política nesta esfera.

Considerações finais

Na participação política, é importante pensar a tríade: organizações da sociedade civil; representação política no âmbito do Estado; e partidos políticos. Quanto mais estas esferas dialogarem, mais se estará aprofundando a democracia. A fala de cada esfera consigo mesma é necessária, mas insuficiente para se avançar na construção da cidadania, que é fruto da gestão pública, e não da gestão partidária ou corporativa.

Nessa medida, o debate sobre a Reforma Política precisa transpor a esfera da representação política, e adentrar os campos da sociedade civil organizada e dos partidos. Cada uma dessas esferas de ação política apresenta lógica e forma de funcionamento próprias, merecendo investigações aprofundadas, principalmente na perspectiva de suas relações e mediações.

Na sociedade brasileira, o espaço político da representação no Legislativo e principalmente no Executivo tem sido privilegiado, em detrimento do espaço político da participação na sociedade civil organizada. Em geral, os partidos políticos são meros instrumentos de acesso à representação política.

Além disso, sua função de promover a iniciação e a formação política, bem como de expressar interesses e propostas para o desenvolvimento do país está profundamente comprometida. E as organizações da sociedade civil, embora tenham conquistado espaços de gestão pública, a exemplo de representações em conselhos setoriais, têm um longo percurso a desenvolver em termos de interlocução com partidos e com representantes eleitos/as e indicados/as. No âmbito da sociedade civil organizada, os movimentos de mulheres e feministas vêm dando uma grande contribuição, revertendo lógicas seculares.

Primeiro, pontuando a importância da democracia na rua e em casa, construindo o âmbito privado, também e sobretudo, como espaço de relação de poder e de construção da cidadania. Segundo, publicizando e politizando as opressões e discriminações que circulam em âmbitos privado e público, e transformando-as em objeto de legislação e de políticas públicas, visando a sua superação.

Terceiro, construindo a perspectiva de gênero, visão a ser incorporada em todos os espaços, temáticas, relações, processos, que alude à necessidade de se considerar sempre: a história de mulheres e de homens; as repercussões sobre o cotidiano de mulheres e de homens; as representações do feminino e do masculino; as relações entre mulheres e homens, entre mulheres, e entre homens.

Nessa medida, os movimentos feministas reivindicam que a Reforma possa contribuir para mudar a política enquanto território masculino, machista, racista e homofóbico. Que possa contribuir para impedir a reprodução das práticas patrimonialistas, autoritárias, paternalistas, personalistas e oligárquicas da cultura política brasileira.

Paradoxalmente e de forma bastante tensionada, são estas mesmas características que se colocam como fortes obstáculos para a efetivação de mudanças e para a realização de uma Reforma Política que amplie a democracia, engajando novos segmentos; além das mulheres, os/as jovens, afro-descendentes, trabalhadores/as, lideranças populares, comunidade de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.

A prática política não garante nada, mas é a única possibilidade real de promover mudanças: de enfrentar as exclusões, desigualdades e discriminações sociais; e de construir uma sociedade em bases democráticas, justas e solidárias. E a Reforma Política brasileira constitui uma oportunidade de consensuar mecanismos e instrumentos que promovam a participação política cidadã, as expressões coletivas e a representação política. Assim, o desafio é contribuir para a realização de uma Reforma Política que afirme valores e práticas no rumo do aprofundamento da democracia, da liberdade, da acessibilidade, do fortalecimento de organizações políticas partidárias e não partidárias, da redistribuição de oportunidades de acesso à representação política e da construção de relações de poder mais simétricas e igualitárias.

Bibliografia

BARREIRO, Line, et al. Sistemas electorales y representación femenina en América Latina. Naciones Unidas/Cepal - Unidad Mujer y Desarrollo. Santiago de Chile, 2004. (Serie mujer y desarrollo, 54)

BENEVIDES, Maria V. Nós, o Povo - reformas políticas para radicalizar a Democracia. Instituto Cidadania (org.). Reforma Política – Estudos e Propostas. São Paulo, 2003. NOGUEIRA, Marco A . Em Defesa da Política. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. (Série Livre Pensar; 6)

RIBEIRO, Renato J. Sobre o Voto Obrigatório. Instituto Cidadania (org.). Reforma Política – Estudos e Propostas. São Paulo, 2003.

RODRIGUES, Almira. Reforma Política e ações afirmativas. Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, n. 7, 2004.

– Este texto foi elaborado com base nos debates e na palestra da autora “A História da Reforma Política: impasses e desafios”, ocorridos no Seminário Reforma Política e Participação Social, realizado no dia 23 de junho de 2004 em Brasília, promovido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto de Política da UnB (IPOL) e Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).

– Artigo publicado na Edição Especial "Quando a participação faz a diferença" do periódico Democracia Viva 23 (Agosto/Setembro 2004) do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (iBase), p. 3 a 7.

Artigo de Almira Rodrigues – socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília e diretora colegiada do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA.

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