quarta-feira, 17 de março de 2010

Pobreza feminina - A mulher, mais uma vez

Eu&Fim de Semana - Jornal Valor 4, 5 e 6 de dezembro de 2009
Por Carla Rodrigues, para o Valor, do Rio, e Robinson Borges, de São Paulo

Núcleo pobre no Brasil metropolitano se concentra nos 1,8 milhões que vivem em famílias chefiadas por mulheresUm dos passatempos favoritos de Mislene Estevão, de 25 anos, é assistir a "Viver a Vida", telenovela de Manoel Carlos exibida no horário nobre da Rede Globo. "Eu sempre vejo.
Adoro", diz. Mais do que as intrigas de amor ambientadas nas orlas do Leblon e de Búzios, o que atrai Mislene é a parte final de cada capítulo, quando cidadãos comuns relatam como superaram seus dramas pessoais. "Às vezes sonho em poder contar minha história na TV", comenta. "Gostaria de falar que, depois de depender de parentes e amigos para sustentar minha filha, ela está bem e eu, trabalhando", diz.

A história de superação de Mislene, no entanto, ainda está no campo da ficção. Mãe de Mirela, de 2 anos, ela vive um drama bem real. A filha, cujo pai morreu no início do ano, tem problemas respiratórios crônicos, o que exige hospitalização frequente e atenção constante quando está em casa, na Vila Nhocuné, bairro da extremidade leste paulistana. "Ninguém quer contratar uma pessoa que é obrigada a faltar sempre. Estou desempregada e sem renda. Vivo dos mantimentos que minha mãe, que também está sem emprego e mora longe, me manda", desabafa.

Dramas como o de Mislene engrossam as estatísticas de um grave problema social no Brasil: cada vez mais a extrema pobreza se concentra em famílias chefiadas por mulheres com menos de 35 anos, responsáveis por crianças de menos de 6.São pessoas que permanecem em condições de indigência, apesar do crescimento econômico, da melhoria e expansão do mercado de trabalho e das políticas de transferência de renda. "São questões que os programas convencionais, como o Bolsa Família, não são capazes de resolver", diz o economista André Urani, sócio-fundador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).

Urani pôs uma lupa sobre dados das dez principais regiões metropolitanas do Brasil e constatou que a pobreza urbana é feminina.

Em 1993 havia 6,3 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza nessas regiões - 1,6 milhões delas viviam em famílias chefiadas por mulheres.

Passados 15 anos, 3,5 milhões viviam em condições de extrema pobreza nessas mesmas áreas - 1,8 milhões em famílias chefiadas por mulheres. Ou seja, embora o total de pessoas com renda familiar per capita até R$ 104,00 tenha sido reduzido, essa diminuição não se verifica em famílias chefiadas por mulheres. Nesse período, apesar de o porcentual de pessoas que vivem na indigência ter caído 44% no Brasil metropolitano - Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio, Salvador, Distrito Federal, Recife, Fortaleza e Belém -, a queda não se refletiu nas condições de vida de quem vive em famílias chefiadas por mulheres.

O fenômeno registrado nas regiões metropolitanas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2008, se repete no Brasil como um todo, ainda que com menos intensidade.

Em 1993, havia 32,4 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza no país, das quais 5,5 milhões viviam em domicílios chefiados por mulheres.Passados 15 anos, havia 15,8 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza, das quais 5,2 milhões viviam em famílias com mulheres no comando.

Apenas 1,7% da redução da indigência no Brasil, portanto, se deu em famílias chefiadas por mulher. "Não somos capazes de enfrentar a extrema pobreza nessas famílias", afirma Urani.

Um dos problemas centrais para que a pobreza adquira o contorno feminino é que as mulheres chefes de família raramente são beneficiadas pelas melhorias no mercado de trabalho, uma consequência da combinação de fatores como falta de perspectiva de futuro, ausência de responsabilidade paterna para com os filhos, baixa escolaridade e falta de equipamentos públicos."Há necessidade, por exemplo, de a creche ser universal e os serviços médicos serem acessíveis", diz Maria Salet Novellino, professora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas e autora da pesquisa "Os Estudos sobre Feminilização da Pobreza e Políticas Públicas para Mulheres".

"O trabalho da mulher está associado à família, e o Estado tem de apoiá-la para que ela deixe a criança num lugar público decente. A mulher falta ao trabalho, basicamente, porque o filho ficou doente.

"Historicamente, famílias monoparentais - com apenas um adulto responsável -, em geral chefiadas por mulheres, são mais pobres por contar apenas com uma renda que, sendo de trabalho feminino, já é menor do que do trabalho masculino, avalia a economista Lena Lavinas, que realizou uma pesquisa sobre a ausência do público feminino entre os beneficiários do Bolsa Família.

Ela identificou que mais da metade das pessoas que não recebem o benefício vivem em famílias chefiadas por mulheres, e 60% das pessoas que não recebem, mesmo sendo elegíveis, são mulheres chefes de família. Os dados foram coletados com 121 mil mulheres do Recife.

Mislene é elegível. Já havia solicitado os benefícios do Bolsa Família fazia seis anos, quando deu à luz Mailon Emanoel Esteves, que morreu ainda bebê. Não obteve o direito. Voltou a buscar informações quando Mirela nasceu. Foi à Regional da Penha, em São Paulo, onde a orientaram a esperar um profissional responsável pelo cadastramento do programa em sua casa. "Até hoje ele não veio. O que eu faço?", pergunta.

Lúcia Modesto, secretária nacional de Renda de Cidadania, área do Ministério do Desenvolvimento Social que coordena o Programa Bolsa Família, diz que trabalha com um novo objetivo para os dois próximos anos: alcançar 2 milhões de famílias, a maior parte nas áreas urbanas. Para isso, investe numa nova forma de fazer o cadastro, treinando profissionais que possam ir às ruas localizar e identificar possíveis beneficiários.

Para cadastrar 120 mil novas famílias, que serão mapeadas nas áreas mais precárias da cidade, a Prefeitura de São Paulo vai receber R$ 4 milhões. O mesmo esforço será feito no Rio e em todas as principais capitais do país, e a meta é identificar famílias que precisam de outros apoios além da transferência de renda.

A pobreza feminina, de fato, tem outros dilemas. A vizinha de Mislene, Rosely Lazzarini, de 32 anos, chegou a ter direito ao Bolsa Família, mas perdeu. Mãe de cinco filhos - Leonardo, 10, Lilian, 8, Luana, 6, Luiz Felipe, 4, e Leandro, 2 -, ela deixou de receber o benefício porque o filho mais velho não apresentou a frequência escolar exigida por duas vezes. "Sou separada e meu ex-marido não paga pensão. O Leonardo foi morar com ele e eu não tinha como vigiá-lo na escola", justifica. "Os que moram comigo raramente faltam.

"Desempregada, Rosely diz que não tem condições de trabalhar por causa dos problemas de saúde da filha Lilian, que há um ano não se locomove e requer cuidado em tempo integral. "Ela tem problema nos ossos e está muito deprimida, por isso não tem vontade de estudar", conta.

Durante algum tempo Rosely vendeu batatas fritas na porta de sua casa, mas, para valer a pena, a matéria-prima tinha de ser adquirida a mais de 25 quilômetros de distância. O negócio ficou inviável. "Não tenho como abandonar tudo. Como batata pesa, e eu ia de ônibus ao parque D. Pedro [zona central de São Paulo] para comprar mais em conta, não dava para pegar mais do que um saco de 50 quilos por vez. Eram muitas viagens."Adultos como Mislene e Rosely têm dificuldade de mobilidade porque, ao ser os únicos responsáveis por crianças tão novas, sem ter com quem deixar os filhos, acaba sendo impraticável até sair de casa, o que impede o atendimento pela rede social. "Falta um conjunto de políticas na rede de assistência social que resolva uma série de outros déficits, além da renda, que aparecem nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres", observa Lena Lavinas, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Quanto mais a política focaliza em públicos específicos, menos alcança quem precisa. Por isso é preciso pensar em políticas universais", defende.

Ao impor mais exigências para o recebimento do benefício, diz Lena, menos o Estado garante benefício às pessoas que precisam dele. "Qualquer programa de inclusão da mulher no mercado deve ser bem equacionado. Não pode ser apenas um programa de renda. As regras do mercado não servem para mulheres com essas características", afirma Maria Salet Novellino.

A carioca Débora Priscila Quintino é outro exemplo de chefe de família sem renda e sem estrutura. Aos 22 anos, é mãe de Mariana, 4, e Caio, 2, dos quais cuida sozinha. Com apenas dois documentos - a carteira de trabalho e a de identidade -, não consegue entrar para o grupo dos beneficiados pelo programa Bolsa Família. Falta tirar o CPF, obstáculo que há quatro anos, desde que nasceu sua filha, ela não consegue transpor. Isolada no alto de uma casa numa favela do Rio, sozinha com os filhos, tem dificuldades em se deslocar para providenciar o documento, exigência para se cadastrar no programa social, que só chegou ao Rio no ano passado. É das pequenas contribuições mensais que ela sobrevive, enquanto espera os filhos crescerem.

"O sentimento de exclusão da pessoa excluída socialmente reforça a condição de exclusão. Ela se prende nessa cadeia de privação e acaba não conseguindo superar obstáculos como esse para receber os benefícios", analisa Maria Salet. "O grau de vulnerabilidade dessa parcela da população é altíssimo.

"A partir do próximo ano, a filha mais velha de Débora Priscila já poderá ir para a escola municipal. Mas, para Caio, ela ainda não conseguiu vaga na única creche municipal do complexo. E, como aponta Lena Lavinas, não há rede de vizinhos disponível para ajudar. O que existe na favela são creches particulares e um lucrativo negócio de mulheres que "tomam conta de criança" no rastro da deficiência de oferta de vagas: ao todo, a rede municipal oferece 250 creches em que estão matriculadas 29 mil crianças numa cidade onde vivem 6,1 milhões de pessoas.

Mesmo que o mercado de trabalho esteja aquecido pelos investimentos públicos que prometem desembarcar na cidade nos próximos anos, Débora Priscila sabe que não será fácil trabalhar: quando Mariana nasceu, ela largou a escola, onde cursava o primeiro ano do ensino médio. Ao ter tempo disponível, pensa em fazer um curso gratuito de manicure, mas ainda não sabe como conciliar a jornada de trabalho de oito horas com o período escolar dos filhos. Como depende da renda da mãe, do pai e da avó para sobreviver, Débora Priscila só pode abrir mão de vir a ganhar a própria renda, enquanto usa seu tempo cuidando das crianças.

"O que mais ajuda na redução da pobreza é o trabalho da mulher, em qualquer configuração familiar. Por isso é tão importante liberar o tempo da mulher para que ela possa contribuir com aumento de renda", diz Lena. Suas pesquisas também identificaram que 80% das famílias chefiadas por mulheres frequentam igrejas evangélicas, e o único lazer dos jovens são os cybercafés, onde se dá 60% do acesso à internet no país. "Não existem lugares onde se constrói identidade social positiva", afirma.

A história de Débora Priscila não só confirma os dados da Pnad, mas mostra como os argumentos de Urani, Lena e Maria Salet se dão, na prática: mesmo tendo direito ao Bolsa Família, ela está entre as mulheres chefes de família que nem sequer conseguem alcançar o benefício. "É preciso criar um imaginário melhor do que possa ser o futuro para essas mulheres", observa Urani, enquanto faz mais contas. Em 1993, nas dez regiões metropolitanas, do total de famílias vivendo em extrema pobreza, 25,1% eram chefiadas por mulheres. Quinze anos depois, do total de famílias vivendo em extrema pobreza, 51,1% são chefiadas por mulheres como Mislene Estevão, Rosely Lazzarini e Débora Priscila Quintino.

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