domingo, 1 de novembro de 2009

Direitos Humanos e Diversidade Sexual do Adolescente -

Um Olhar do movimento LGBT sobre a violação dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes
Alessandra Guerra ₁

1- Introdução

O enfoque necessário do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) às discussões acerca da realidade de crianças e adolescentes deve acontecer através da afirmação de seus direitos sexuais. Assim, é evidente que qualquer movimento que quer assegurar os direitos sexuais, ou melhor, os direitos humanos, se engaje na luta pelo direito de expressar e exercer o afeto e a sexualidade, tanto no público como no privado, sendo a pessoa homossexual ou heterossexual, mulher ou homem e sendo ela idosa ou adolescente.

Infelizmente, o olhar do movimento para a amplitude que envolve a garantia dos direitos de um indivíduo em puberdade, fase tão importante de seu desenvolvimento com todas as suas especificidades, é ainda muito opaco e fragmentado e com certeza há fatores que contribuem para o distanciamento do movimento a essa discussão, como por exemplo, a infundada relação entre a homossexualidade e a pedofilia.

A aproximação do grupo LAMCE₂ com o tema se deu através do contato com uma jovem militante dos direitos das crianças e adolescentes, Lídia Rodrigues, que é representante do grupo ECPAT₃ Brasil e que na época integrava o Comitê Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual de Crianças e adolescentes. A partir desse contato realizamos informalmente e depois formalmente algumas discussões sobre o que vulnerabiliza os adolescentes que assumem a identidade afetivo-sexual diferenciada do padrão heterossexista vigente em nossa sociedade.

O resultado dessas discussões foram algumas oficinas especificas, que além de fomentar a discussão com outros sujeitos, fez brotar em nós a indignação das injustiças cometidas nas violações dos direitos afetivos e sexuais de crianças e adolescentes e nos despertar para a importância da sensibilização de todo o movimento LGBT para que passe a enxergar essa luta como necessária e urgente.

2- Fatores importantes para a análise

Em uma das oficinas de reflexão sobre o tema Violação dos direitos sexuais de crianças e adolescentes, chegamos à conclusão de que o movimento LGBT deveria estar avidamente discutindo a situação dos direitos sexuais dos mesmos, minimamente ou prioritariamente em três aspectos:

1- Quais os fatores que vulnerabilizam crianças e adolescentes que sentem e de alguma forma expressam sinais de que a sua orientação sexual é diferente do padrão heterossexual ou a sua identidade de gênero é diferente da pré-estabelecida socialmente ao seu sexo biológico?
2- O que há de mito e/ou verdade na afirmação que “a violência sexual acometida a uma criança ou adolescente é fator que influencie na sua compreensão intima, consciente ou inconsciente sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero”; e
3- O que há de mito e/ou verdade na afirmação muito utilizada por fundamentalistas para criminalizar a homossexualidade, que “a orientação sexual é uma condicionante a prática da violência sexual.”

Não temos respostas prontas, daí a necessidade de ampliação da discussão entre os movimentos que lutam pela efetivação dos direitos humanos. O que nós do LAMCE fazemos hoje é dialogar com os diversos sujeitos, inclusive com o movimento de crianças e adolescentes para levantarmos possíveis fatores que contribuam nessa discussão, e a partir daí minimamente desenharmos um rascunho de nossas idéias e acumularmos subsídios que fundamentem nossa luta pelo direito da expressão da afetividade e da sexualidade estendido a todas as pessoas.
Passemos então a analisar conjuntamente alguns pontos que levantamos em nossas discussões sobre esses fatores.

2.1 Violações dos direitos afetivo-sexuais de crianças e adolescentes – Especificidades e Vulnerabilidades

Sabemos que de acordo com o artigo 5º da Constituição federal de 1988, todas as pessoas são, ou deveriam ser consideradas iguais perante a lei. Entendemos que a palavra “todas” se refere ampliadamente a todas as pessoas, independente de seu gênero, idade ou orientação sexual. Mas sabemos também que a criança ou o adolescente é um sujeito de direitos em situação peculiar de desenvolvimento, como nos afirma o ECA – Estatuto das Crianças e Adolescentes, e por isso, deve estar dentro de nossa absoluta prioridade, como nos diz também a carta magna brasileira.

Reconhecer o adolescente ou a criança como um individuo em situação diferenciada de direitos, mas como seres legítimos de direitos é saber que precisam ter respeitados e garantidos o exercício da sexualidade e da afetividade. O ECA, embora se omita vergonhosamente dessa discussão, nos diz que esses mesmos sujeitos tem direito a opinião e expressão e também o direito a preservação da identidade, autonomia e principalmente o direito ao respeito.

Quando falamos desses princípios de liberdade e respeito e os relacionamos com a diversidade de identidades afetivo-sexuais, estamos falando de direitos que não são respeitados. Vivemos em um mundo onde há países como Irã e Nigéria que ainda punem com pena de morte quem expressa a orientação sexual homossexual. Em nosso país, embora haja um movimento organizado 99% da população₄nutre alguma forma de preconceito ou discriminação contra pessoas LGBT, e há anos não conseguimos aprovar uma lei que puna a homofobia ou que minimamente reconheça como entidade familiar aquelas famílias constituídas através da afetividade entre pessoas do mesmo sexo. E o que dizer da situação das crianças e adolescentes?

Uma criança antes de nascer já é construída socialmente. Ao saber do resultado do exame de ultra-sonografia que identifica o sexo biológico da criança, a mãe imediatamente passa a comprar roupas azuis ou rosa, bonecas ou carrinhos, afim de que essa criança chegue ao mundo carregada de símbolos e significados que lhe “deveriam” ser próprios. A criança ao nascer, nasce junto com a expectativa de que o investimento social que é feito desde antes do seu nascimento, e que depois será reafirmado por toda a família, escola e sociedade, vai dar certo. Não existe escolha.

No entanto, muitas vezes essa expectativa é frustrada, e o sexo biológico e o investimento social não são suficientes para aquele ser entender e sentir como de sua propriedade a identidade que é atribuída socialmente ao seu sexo de nascimento.

Impedir uma criança do sexo masculino de brincar de boneca, simplesmente pelo fato de existir uma norma social que atribua bonecas ao sexo feminino, é de fato uma violação de direitos.
Impedir uma adolescente de namorar outra menina adolescente, só por ser vigente socialmente uma norma que diz que ela deve ser heterossexual e namorar somente meninos adolescentes, também é uma violação de direitos. O que dizer do constante buling por parte dos alunos da escola em que estuda, que é constantemente ignorado e até mesmo reforçado pelos professores, levando o adolescente à dificuldade de aprendizagem e até o abandono dos estudos? E das famílias que humilham, maltratam e agridem fisicamente ao constatarem que o investimento social não deu certo? E do pai, que faz uso do “estupro corretivo” para violentamente provar para a filha que ela deve gostar de homens, se adaptando ao que ele considera correto? E das famílias que não aceitam a identidade do adolescente e o expulsa de casa deixando-o extremamente vulnerável a toda a sorte de violências, inclusive o abuso e a exploração sexual? E da adolescente travesti, que mesmo quando consegue terminar seus estudos, fato extremamente raro devido à pressão social que enfrenta, dificilmente arrumará algum tipo de emprego? E que devido à falta de oportunidades, ela quase certamente, entrará na teia da exploração de corpos para o fim de exploração sexual?

A percepção da gravidade da situação que é a constante violação dos direitos fundamentais desses indivíduos, como o direito a liberdade, ao respeito e a dignidade, a vida familiar e comunitária, a educação e a profissionalização, não pode ser ignorada pelo movimento LGBT e pelo movimento de crianças e adolescentes. Precisamos de uma grande incidência política para que o Estado garanta a inviolabilidade dos direitos desses indivíduos.

E ainda há muito sobre os direitos dos adolescentes que precisamos refletir e discutir. O que podemos dizer, por exemplo, de uma menina transexual que além de viver um conflito entre sua identidade própria e a identidade social atribuída ao seu sexo de nascimento, entra na puberdade e começa a ver que o seu corpo não se desenvolve como o corpo das outras meninas e recorre ao uso de hormônios e as técnicas de modificação corporal? Sem dúvida imaginamos como ela ficaria feliz e realizada ao ver seus seios se desenvolverem como os de uma menina sem conflitos com o gênero que lhe é atribuído. Sabemos que este inclusive é um direito individual a liberdade, a identidade e a dignidade.

Mas será que essa adolescente já é um ser plenamente capaz de lidar com as conseqüências de uma terapia hormonal ou um implante de silicone? Quem se responsabiliza no caso de conseqüências indesejáveis? Será a família que a humilha e não apóia sua decisão, o Estado que as invisibiliza ou a travesti mais experiente que ao ver naquela menina os seus mesmos conflitos a ensina como usar hormônios, ou aplicar silicone industrial? De fato é um grande desafio para os movimentos e para o Estado a reflexão sobre questões tão complexas.

2.2 A violência sexual é fator gerador da homossexualidade?

Muito se fala hoje em dia, nos diversos campos da ciência como a biologia, a engenharia genética e a medicina psiquiátrica e também nos estudos da religião e da espiritualidade, sobre as possíveis causa da homossexualidade. O movimento LGBT costumeiramente não apóia nenhuma teoria específica sobre a causa da homossexualidade, aceitando-a como uma das múltiplas formas do entendimento que um sujeito pode ter do seu próprio desejo e afeto, muitas vezes questionando o porquê das pesquisas não estarem fazendo, ao invés disso, tentativas de elucidar a causa da heterossexualidade compulsória que acomete nossa sociedade.

No entanto, há uma afirmação específica que o movimento LGBT e o movimento de crianças e adolescentes devem oferecer bastante atenção. Essa afirmação tem contribuído para que a teia de violação de direitos que acomete as crianças e adolescentes se perpetue em uma série de violências que não são sequer costumeiramente catalogadas.

Essa afirmação é o entendimento de que “a violência sexual acometida a uma criança ou adolescente é fator que influencie na sua compreensão intima, consciente ou inconsciente sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero”.

O perigo existente nessa afirmação, é que após uma criança ou adolescente sofrer uma violência, como o abuso sexual ou um estupro, ela ainda tenha que enfrentar a não liberdade de re-significar as suas dores intimas como bem entender ou como a fizer bem, sem que se recaia sobre ela o peso do não cumprimento da expectativa da heterossexualidade.

A re-significação, embora possa ser trabalhada com a ajuda de profissionais específicos, é um processo íntimo e individual. Não podemos condenar e violentar ainda mais uma menina que ao passar por um processo de constantes abusos e estupros realizados por um ou mais seres do sexo masculino, passa a ter aversão ao contato sexual com homens e entende sua orientação sexual como lésbica. Também não podemos supor que um menino que foi abusado e estuprado por um homem seja um gay de fato ou em potencial. Temos que ter a ciência de que cada indivíduo tem o direito de compreender e processar suas dores íntimas conforme lhe for aprazível ou possível.

2.3 É a homossexualidade um fator potencial para definir um abusador?

Outra afirmação que está intrínseca no imaginário popular e que o movimento LGBT deve ter extremo cuidado e cautela, pois tem fundamentado o discurso daqueles que são contrários a expressão da homossexualidade, é a afirmação sobre “a orientação sexual ser uma condicionante a prática da violência sexual.”

Infelizmente não podemos negar, que assim como há pessoas heterossexuais que abusam sexualmente de crianças e adolescentes, de fato existam pessoas homossexuais que façam o mesmo. O movimento LGBT brasileiro se diz contra a pedofilia, mas no entanto, reluta em adentrar a fundo na discussão, com receio de alguma forma estar legitimando que talvez seja a homossexualidade um fator potencial para definir um abusador. Mas será que realmente é?
Devemos pensar sobre o que esta sociedade espera de um individuo que tem o entendimento intimo de seu gênero, sexualidade ou afeto negado e ridicularizado desde a infância. Quem vai impedir que uma pessoa que tem todos os seus desejos íntimos reprimidos em nome da norma social imposta, interiorize e signifique de tal forma a sua sexualidade, que perca a noção do que é realmente importante se cumprir do que lhe é socialmente imposto e passe a cometer as maiores violências contra uma criança, adolescente ou contra si mesmo? Não são significativos os casos até mesmo de suicídios entre pessoas que entendem a sua orientação sexual ou a identidade de gênero diferentes do padrão pré-estabelecido?

Mesmo assim, ao discutirmos as violências cometidas por pessoas homossexuais às crianças e adolescentes, devemos anteriormente ter como base as estatísticas de pesquisas sobre o assunto. Ao analisá-las, veremos o quanto é superior a quantidade de pais, tios, padrastos, primos e vizinhos que abusam e violentam sexualmente de meninas e como é incomparável a grande quantidade de homens heterossexuais que exploram sexualmente crianças nas ruas e estradas do nosso país.

Mas o fato é que quando a sociedade afirma que “qualquer tentativa de criminalizar a homofobia ou garantir os direitos dos LGBT contribuirá para que aumentem os índices de abuso e violência sexual” está instantaneamente e gravemente propagando ainda mais a incompreensão e o ódio contra aqueles que já são alvo de tantas intempéries. Além disso, esta afirmação está sendo utilizada por diversos setores religiosos fundamentalistas que ao se instalarem no sistema político, passam por cima da laicidade do Estado brasileiro impedindo avanços na garantia de direitos fundamentais das pessoas LGBT, inclusive as crianças e adolescentes.

Portanto voltamos a afirmar que se requer a atenção máxima e constante do movimento LGBT à ação dessas pessoas na incidência política contrária a luta por direitos humanos garantidos, que pode até mesmo explicar a morosidade na execução de políticas públicas e aprovação de leis específicas.

Devemos também desejar que o movimento de crianças e adolescentes se abra para a parceria e não permita que nenhum sujeito político, instituições ou igrejas enunciem que lutam por direitos desses sujeitos e violentem de tal forma os direitos humanos básicos de forma tão fundamentalista e equivocada.

3 - Conclusão

No decorrer deste texto podemos observar vários fatores e demandas que nós do LAMCE consideramos essenciais para a incidência do movimento LGBT, no intuito de assegurar os direitos humanos e sexuais de crianças e adolescentes. Novamente afirmo que não temos respostas prontas. Por isso o texto, bem como nosso discurso, é cheio de interrogações. O nosso objetivo inicial é incitar que os sujeitos e movimentos travem essa discussão sem medo, pois além de necessária e urgente, deve ser alvo da nossa absoluta prioridade.

Não podemos deixar de olhar as especificidades das crianças e dos adolescentes quando pensamos políticas públicas para LGBT. Nós não estamos fazendo isso. Pensamos em formas de se educar as crianças para o respeito à diversidade, mas não as ensinamos como lidar com a sua compreensão sobre gênero, sexualidade ou afeto e nem como lidar com toda a pressão social que é assumir publicamente a sua orientação sexual ou identidade de gênero. Na realidade, nós muitas vezes não sabemos o que dizer, já que nós, sujeitos desse movimento, também vivemos em uma teia de preconceitos e discriminações que muitas vezes não conseguimos lidar e enfrentar.

Mas também não podemos permitir que afirmações sem fundamento ou baseadas em princípios sociais patriarcais ou religiosos perpetuem a violência contra essas crianças e adolescentes e muito menos que impeçam o avanço de nossa luta por uma sociedade digna, justa e igualitária para todas as pessoas.

4. Notas
1- Alessandra Guerra – – Coordenadora colegiada do FCM- Fórum Cearense de Mulheres e do grupo LAMCE – Liberdade do Amor entre Mulheres no Ceará e integrante da Articulação Brasileira de Lésbicas
2- LAMCE – Liberdade do amor entre mulheres no Ceará é um grupo que existe desde 2005 e é formado por mulheres lésbicas e bissexuais feministas. O grupo tem como missão “Lutar contra a disseminação do preconceito por orientação sexual e identidade de gênero, através de ações políticas afirmativas voltadas para a visibilidade, garantia e efetivação dos direitos humanos e cidadania de mulheres lésbicas e bissexuais, a partir do projeto político feminista."
3- ECPAT – ECPAT – End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes
4- Dado da Pesquisa Fundação Perceu Abramo
5. Bibliografia:
- Estatuto da criança e do adolescente de 1990;
-Princípios de Yogiakarta - Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero;
- Bento, Berenice – Transexuais, corpos e próteses.

65% das meninas que se prostituem usam dinheiro em bens de consumo

Celular é o produto mais cobiçado; boa parte também admite que emprega dinheiro na compra de drogas
Fernanda Aranda

Pesquisa pioneira no País sobre o perfil de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual mostra que 65% usam o dinheiro recebido em troca de sexo para comprar objetos como celular, tênis ou blusa da moda. Três em cada dez assumiram vender o corpo para sustentar o vício das drogas. O valor médio recebido pelas relações é de R$ 37, mas há relatos de programas que custaram R$ 10.

Os resultados foram apresentados ontem pelo Instituto WCF-Brasil (Childhood), entidade internacional que atua no combate à exploração infantil. Foram acompanhados por psicólogos especializados em violência 66 meninas e 3 meninos de 10 a 17 anos, atendidos por instituições especializadas. "O trabalho mostrou, diferentemente do que se imagina, que elas não são meninas em situação de miséria absoluta, a ponto de trocar sexo por comida", diz o coordenador do estudo e psicólogo da Universidade Federal de Sergipe Elder Cerqueira-Santos. "O que mais apareceu como motivação foram bens de consumo."

Essa situação foi encontrada nos oito Estados pesquisados (Pará, Sergipe, Rio Grande do Norte, Piauí, Bahia, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul). "Vivemos hoje uma situação de marketing infantil violento", avalia a coordenadora da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Fernanda Lavarello. "Todos são atingidos por esse fenômeno; quem tem ou não condições financeiras de comprar. O que muda é a estratégia para consumir."A frase "sem um celular você não é ninguém", dita por uma das garotas, resume um dos principais problemas provocados pela troca de sexo por bens de consumo.

Os especialistas avaliam que nem a sociedade nem as meninas notam que ocupam o papel de vítimas na exploração. "Fizemos uma pesquisa com caminhoneiros brasileiros e os que admitiram (37%) já terem sido clientes de menores de idade mantiveram esse discurso", ressalta Anna Flora Werneck, coordenadora de projetos da Childhood. "Não acham essas meninas coitadinhas - e sim responsáveis por aquela situação", completou o psicólogo Cerqueira-Santos.

Outro dado que compõe o quadro da exploração, e também contribui para que as garotas sejam responsabilizadas, é o uso de substâncias químicas. Os índices de uso entre as garotas acompanhadas pelos pesquisadores foram mais altos do que os padrões de consumo da população na mesma faixa etária. Entre as exploradas, 88% relataram usar álcool e 36% maconha - em meninas de mesma idade, o porcentual é de 4%, segundo a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Vulneráveis pela dependência química e culpadas por vender o corpo, as meninas fomentam o ciclo de abuso infantil que está espalhado por 1.819 pontos de risco, já mapeados pela Polícia Rodoviária Federal, apenas nas estradas brasileiras.

out./2009

domingo, 12 de julho de 2009

MULHER E PODER

Céli Regina Jardim Pinto
Professora do Departamento de História UFRGS
Doutora em Ciência Política

Meu objetivo nesta comunicação é fazer uma reflexão sobre o tema mulher e poder a partir de duas perspectivas que estão estreitamente relacionadas: a primeira perspectiva diz respeito a questões mais concretas do binômio mulher- poder e concerne a posição das mulheres no espaço público, mais especificamente na arena da luta política. A segunda perspectiva refere-se ao binômio de uma forma mais teórica, buscando embasamento para propor questões para reflexão sobre este binômio que parece mais um enigma. Todo o argumento que tratarei de desenvolver tem como foco central de preocupação a questão brasileira.

Uma das questões mais centrais quando o tema é a presença da mulher na arena pública de decisão em termos gerais ou na política é a seguinte: que mulheres queremos nos cenários políticos? Todas as mulheres independente de classe, posição política, comprometimento com as questões de reconhecimento das minorias sem poder? Ou estamos lutando para elegermos nos parlamentos e nas posições chaves de poder, mulheres feministas que defendam as grande causas do movimento?

A militância feminista, assim com a militância de outros movimentos sociais, como negros e gays, tendem a responder afirmativamente a segunda parte da questão e serem muito evasivos em relação a primeira, com o argumento que mulheres que não se reconhecem como sujeitos políticos não lutam pelas causas das mulheres em geral.

Mesmo que a assertiva seja verdadeira, gostaria de partir de uma outra perspectiva e afirmar que a simples presença de mulheres como vitoriosas, sejam elas feministas ou não, em um quadro maduro de concorrência eleitoral, é muito revelador da posição ocupada pela mulher no espaço público da sociedade. Em países onde o movimento feminista teve uma história longa com muita visibilidade e com vitórias expressivas no campo dos direitos das mulheres , há um número importante de mulheres na disputa eleitoral e nos cargos legislativos, executivos e judiciários.

Todavia, esta presença não garante que as mulheres tenham se eleito com plataformas feministas ou sejam feministas. Mesmo assim é muito mais provável que as demandas por direitos das mulheres sejam defendidas por mulheres do que por homens, independente da posição política, ideológica e mesmo de inserção no movimento feminista Se a metade dos 513 deputados da Câmara Federal brasileira fosse de mulheres certamente o tema do aborto, teria uma presença muito maior e um debate de qualidade muito diferenciada nos debates parlamentares, até porque este cenário tão hipotético revelaria uma campo de forças muito distinto do que existe hoje entre homens e mulheres.

Iris Young é afirmativa neste ponto, discutindo seu conceito de perspectiva que eu desenvolverei mais tarde nesta apresentação ela afirma “ Não é muito comum para pessoas sem atributos descritivos representarem uma perspectiva(... Um homem asiático americano que cresceu em um bairro predominantemente afro americano, que tem muitos amigos afro americanos e que trabalha em um serviço comunitário com afro americanos, por exemplo, pode ser capaz de representar uma perspectiva afro americana em muitas discussões, mas a maioria dos homens asiáticos americanos não poderia, porque eles são muito diferentemente posicionados” (Young,2000;148)*.

A cientista política Anne Phillip, por sua parte, tem uma reflexão muito sofisticada sobre relação de presença com a idéia no campo político. É sua tese que a idéia pode sobreviver sem a presença, isto é, pode haver defensores do feminismo no parlamento sem mulheres, mas que tal situação é rara e limitada. São suas as palavras: “ quando a política das idéias é tomada isoladamente do que eu chamarei política de presença, ela não da conta adequadamente da experiência daqueles grupos sociais que por virtude de sua raça, etnicidade, religião, gênero tem sido excluídos do processo democrático. Inclusão política tem sido cada vez mais – eu acredito acertadamente – vista em termos que pode ser concretizada somente
por política de presença.” ..” (Phillips, 1996;146)

* todas as traduções foram feitas por mim para uso exclusivo neste texto

Retomando a questão inicial podemos identificar quatro cenários da mulher na arena política: 1. sem idéia nem presença; 2.com idéia sem presença; 3.sem idéia com presença; 4. com idéia e com presença. Para meus propósitos vou permanecer com os dois últimos cenários e afirmar que eles são igualmente importantes para a questão da mulher, são complementares e permeáveis um ao outro.

Isto posto, gostaria de fazer uma inflexão na minha fala para trazer elementos para uma discussão sobre a ausência da mulher na arena política brasileira (que acompanha a mesma lógica de ausência/presença de outros países). Neste momento gostaria de focar uma questão mais ampla, que reputo básica para o entendimento da problemática que estou aqui tratando: as relações de poder em si. Permitam-me afirmar como ponto de partida que o entendimento analítico de como estas relações funcionam, possibilita um aporte mais realista à questão específica em pauta.

Gostaria de colocar a questão da relação mulher e poder a partir de três perspectiva: a primeira diz respeito a posição relativa da mulher na estrutura de dominação, e para tal assumirei a existência de um sujeito unitário mulher em contraposição a um sujeito unitário homem. Esta é uma simplificação grosseira que eu plenamente reconheço, mas que mantenho porque ela me permite discutir a questão do poder na sociedade moderna e chegar a alguns pontos, que reputo fundamentais para o que estou discutindo aqui.

A segunda perspectiva diz respeito a pretensão de poder da mulher na sociedade moderna. A questão que me norteia neste momento é a seguinte: a razão pela qual a mulher tem presença tão pequena nos postos poder político (o momento mais strito senso do poder) estaria na resposta a primeira questão?

E a terceira perspectiva diz respeito a uma questão central de representação: as mulheres empoderadas têm construído uma identificação com as mulheres em geral capaz de as reconstrui-las como sujeitos de poder. Em outros termos, capaz de empodera-las. Qual é a aproximação entre as mulheres empoderadas e as mulheres que se pretende empoderar?

Em outra oportunidade discutindo o binômio inclusão-exclusão me vali de um texto de Foucault para estudar formas de exercício de poder. (Pinto,1999) Trata-se da aula no College de France de 15 de janeiro de 1975. Nela Foucault exemplifica, historicamente, dois modos de exercício de poder: o que se constituiu frente a tentativa de controlar a lepra e o que se constituiu frente à peste bubônica , ambos na Europa do fim do medievo. Foucault no primeiro caso afirma que se excluiu, no segundo se incluiu. Primeiro descreve a ação em relação a lepra na Idade Média: “ A exclusão da lepra, era uma prática social que comportava uma segregação rigorosa, um colocar a distância, uma regra de não contato entre um indivíduo ( ou grupo de indivíduos ) e um outro. A rejeição destes indivíduos em um mundo exterior, confuso, para lá dos muros da cidade, para lá dos limites da comunidade.” (Foucault, 1999: 41)

Em contraposição descreve a ação contra a peste: “A cidade em estado de peste – (..) foi dividida em distritos, os distritos foram divididos em quarteirões, e dentro destes quarteirões foram isoladas as ruas e havia em cada rua os vigilantes , em cada quarteirão os inspetores, em cada distrito e na própria cidade havia um governador eleito para este fim.. (......) “

Em relação a este segundo tipo de exercício de poder Foucault afirma “ Não se trata mais de uma exclusão, se trata de uma quarentena, Não se trata mais de caçar, se trata, ao contrário de estabelecer, de fixar, de presenças esquadrinhadas. Não é rejeição, mas inclusão.” (Foucault, 1999: 43)

O texto de Foucault é uma forte metáfora para quase todas as formas de poder presentes no mundo contemporâneo. Se tomarmos a posição da mulher no mundo público (deixarei de fora a questão das relações no mundo privado , no que pese muito importante, mas não fundamental para o meu argumento neste momento) as metáforas são muito valiosas. Dos gineceus coloniais até as exclusões jurídicas na primeira constituição republicana a metáfora da lepra parece dar conta da teia de relações de poder onde a mulher brasileira se encontrava. Ao ser confinada à casa, paradoxalmente, a mulher era expulsa dos muros da cidade, entre os quais o mundo público se conformava. Ela, simplesmente, não existia. Quando a constituição de 1891 estabelece que todos os cidadãos brasileiros alfabetizados e maiores de 18 anos eram eleitores, ficou claro para o conjunto da população de homens e mulheres e para o regramento jurídico do país, que as mulheres não poderiam votar. O direito ao voto, como sabemos, só foi obtido em 1932. Não se citou a mulher em 1891, não lhe prescreveu limites, simplesmente se excluiu, não se reconheceu sua existência.

A partir de 1932, e vou usar esta data, como poderia usar outras, mas tenho bastante convicção que esta é uma data muito significativa, a mulher começa a aparecer na ordem da dominação, no mundo público como uma persona, que deveria ser controlada, a ela foram atribuídos lugares permitidos e lugares proibidos. Estaria incluída em alguns discursos e excluía de outros. Porque isto acontece? Parece-me que por força de dois vetores: a dinâmica da construção recente do estado nacional no Brasil e do próprio capitalismo e pela força contrária construída pela luta das mulheres em geral e do feminismo em particular. Dos lugares proibidos certamente o espaço da política é o mais claramente proibido e por vias de conseqüência o mais difícil de romper. Por que era o mais claramente proibido? Por que o é ainda hoje?

Parece-me que há dois motivos um decorrente do outro, que possuem uma perenidade surpreendente e que até hoje devem ser considerados quando se pensa na imensa dificuldade da entrada da mulher na política no Brasil. O primeiro é o imenso poder pessoal que adquirem os membros de parlamentos e governos. Este poder pessoal não tem correspondência necessária ao poder político, mas é fundamental na reprodução de ordens hierárquicas presentes na sociedade brasileira: de classe; de gênero; de etnia entre outras. As razões deste poder pessoal são complexas e tem como base a própria hierarquia da sociedade brasileira que historicamente legitimou a desigualdade tanto dos mais pobres como dos mais ricos, tanto dos despoderados como dos poderosos. No Brasil não existem instâncias que tornem todos os seus cidadãos e cidadãs iguais em direitos e deveres de fato. Há um fosso, entre as elites que se sentem desiguais no sentido de se arvorarem direitos especiais e as camadas populares que se sentem desiguais, no sentido de não perceberem seus direitos e os vivenciarem, muitas vezes, como favores. Estas elites inicialmente econômicas e sociais, depois acrescidas das elites sindicais, acadêmicas entre outras, usufruem e reproduzem estas “desigualdades para cima” e protegem os limites dos espaços de exercício de poder. A entrada nestes espaços de personas, de grupos que forjaram lugar no espaço público justamente desafiando esta ordem hierárquica é freada de todas as maneiras. Este espaço de poder tem mostrado uma grande capacidade de conversão de novos membros a sua dinâmica de reprodução de desigualdade, na apropriação, por exemplo, dos bens públicos. Para ter este êxito, deve limitar o acesso aos novos membros.

Ao próprio feminismo foi dado um lugar neste arranjo de dominação, As mulheres feministas podem falar algumas coisas e não outras. As mulheres não feministas terão poderes outro, porque não feminista. Quando uma mulher fala sua fala tem uma marca: é a fala de uma mulher; quando uma mulher feminista fala tem duas marcas, de mulher e de feminista.

A recepção destas falas por homens e mulheres tende a ter a mesma característica, é a recepção de uma fala marcada, portanto, particular, em oposição à fala masculina/universal. Se for a fala de uma mulher feminista e o particular do particular.

Mesmo quando as mulheres ultrapassam barreiras pessoais e partidárias e tornam-se candidatas, pesquisas que tenho realizado mostram que estas mulheres não enfatizam nem o fato óbvio de serem mulheres e, portanto, de serem uma novidade, nem tão pouco articulam em suas plataformas com destaque temas presentes nas lutas feministas. Está é uma questão que reputo quase tão fundamental como a ausência per se.

Em 2008 a cidade de Porto Alegre viveu uma experiência eleitoral única na sua história, teve três candidatas à prefeita, todas deputadas federais de grande destaque e tendo pelo menos duas dela,s reais chances de serem eleitas. Em pesquisa realizada a partir dos programas eleitorais gratuito veiculados na TV e nos programas editados nas páginas da internet verificou-se uma quase total ausência de referência à condição de mulher das candidatas e a mulher foi a grande ausente no discurso da campanha veiculada na televisão. As razões desta ausência devem ser buscadas tanto na postura das próprias candidatas como na recepção do discurso pelos eleitores e eleitoras. Tendo em vista que as questões referentes aos direitos das mulheres aparecem nos programas escritos de algumas destas candidatas, até de forma bem detalhada, a ausência de qualquer referência a eles no programa eleitoral de TV parece indicar, que as candidaturas não assumem a existência de um número significativo de eleitoras-eleitores que se sensibilizariam com este tipo de problemática.

Judith Butler discutindo o tema da representação dá uma contribuição muito importante na discussão da presença da mulher na política. A filósofa norte americana é categórica em afirmar que não basta indagar e fazer uma analítica das condições de reprodução de poder e opressão que estão presentes nas instituições, onde as mulheres buscam espaços para a sua liberação Eu cito: “Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação.” (Butler, 2003: 19)

Tal perspectiva é importante de ser considerada, pois o espaço da política institucional representativa não é um espaço novo conquistado (como os Conselhos, Delegacias, Secretarias) mas o espaço do outro que tem de ser rompido, penetrado e transformado. O outro com esta nova penetração perdeu sua inviolabilidade, sua clausura, seu espaço intacto de reprodução de discurso de poder: torna-se um outro diferente, ou perde sua identidade transformando-se em um nós. Buscar emancipação no lugar do outro é uma ação com dificuldades e efeitos muito específicos. Poder-se-ia pensar em um cenário alternativo de construção de novos espaços pautados por novos acordos de vivência, convivência e formas de tomada de decisão, que ao longo do tempo criariam condições de uma morte por asfixia dos antigos espaços, que definhariam como excrescências ou tradições despoderadas A titulo de exercício poderíamos imaginar a construção de espaços paritários de deliberação pública democraticamente construídos que ocupassem espaços de poder, reduzindo , por exemplo a tradicional forma de representação liberal. Este processo é complexo e necessita acontecer dentro de uma lógica de soma zero, para não criar enclaves.

Butler avança ainda mais em sua análise colocando um outro questionamento central. Para melhor clareza no argumento cito novamente: “Se alguém “é” mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (Butler, 2003: 20)

O texto de Butler é provocador e leva a pensar até onde as mulheres quando saem do privado para enfrentar e/ou construir o público tornam-se cada vez menos mulher. Note-se bem que não estou aqui a defender a existência de uma mulher essencial, mas de uma mulher que se fez mulher historicamente em uma dialética de dominação e resistência. As mulheres das quais fala Butler reconstroem no público esta sua condição primeira de mulher e ao sair do local de recolhimento (o privado) interage com outras condições deixando de ser só mulher. A tese de Butler me permite avançar em duas direções, a primeira no que diz respeito ao que eu estava discutindo anteriormente, a entrada da mulher no cenário político como portadora de uma “identidade” mulher; a segunda, a possibilidade de ver a eleitora também fazendo esta saída do privado para o público abrindo mão de sua condição de mulher.
Afirmaria aqui a título de tese a ser investigada, que no espaço político por ser o mais masculino dos espaços é onde a mulher mais aparece como mulher e mais necessita ser menos mulher para ser candidata e ser eleita. Daí fazer sentido a proposta de Butler: “refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigência de se construir um sujeito do feminismo”

O que se constituiria uma “perspectiva feminista”? Butler não avança neste tema, e a noção de perspectiva tem muita potencialidade na medida em que ela de certa forma liberta personas e movimentos do peso da identidade e da própria sujeição como um momento de recriação do “eu”. Foi Young que abordou a questão da perspectiva com muita profundidade, deixando um importantíssimo legado para a nossa reflexão.

Para ela quem identifica grupo com identidade não vê um aspecto fundamental: “ Tal rígida conceptualização de diferenciação de grupo ao mesmo tempo nega as similaridades que muitos membros do grupo têm com aqueles que não pertencem ao grupo e nega os muitos gradientes de diferenciação dentro do grupo” (Young, 2000: 89).

Discutindo o tema da representação Young identifica três formas através das quais a representação se concretiza: Interesse, opinião e perspectiva. Interesse: é “ o que afeta ou é importante para a perspectiva de vida dos indivíduos ou para os objetivos das organizações” Tem um fim específico. A opinião é descrita pela autora como: “princípios, valores e prioridades de uma pessoa que condiciona seus julgamentos sobre que políticas devem ser perseguidas e que fins atingidos.” E, finalmente, perspectiva conforma-se a partir de “experiências diferentes, histórias e conhecimento social derivado de suas posições na estrutura social.”

Young quando analisa as possibilidades de representação está muito preocupada com a questão da diferenciação, tema recorrente em toda sua obra. Para ela diferenciação é um recurso de poder fundamental que não pode ser combatido em nome de um consenso que se oporia ao conflito. A autora é categórica “Contrário àqueles que pensam que políticas de diferenciação de grupos somente criam divisão e conflito, eu argumento que diferenciação de grupo oferece recursos para um publico comunicativo democrático que objetiva a justiça, porque pessoas diferentemente posicionadas tem experiências diferentes e conhecimento social e histórico derivado deste posicionamento que eu chamo isto de perspectiva” (Young, 2000;136)

Tendo presente as diversas questões que tentei levantar ao longo desta exposição passo para a última parte de minha exposição que denominei “notas para reflexão”. Dividirei este momento final em dois conjuntos de questões, o primeiro conjunto diz respeito a posição da mulher na estrutura de dominação; a possibilidade de determinação por estas características estruturais da ausência da mulher nos espaços de poder; a existência de aproximação entre mulheres empoderadas e não poderadas.

O segundo conjunto constitui-se de questões de caráter mais procedimentais informadas pela discussão que tentei levar a efeito nesta apresentação 1. A democracia liberal representativa tal com existe no Brasil tem potencial para incorporar novos sujeitos?; 2. Quais são os limites e possibilidades da reforma política? 3. Quais são os limites e possibilidades de um programa de inclusão política; 4. Quando é imperativo repensar o público como um espaço de emancipação?

Em relação ao primeiro conjunto gostaria de pontuar o seguinte:

1. Não há dúvidas que existe uma estreita relação entre a posição relativa que a mulher ocupa na estrutura de dominação e a sua presença na vida política. No caso específico do Brasil esta estrutura de dominação tem duas características muito particulares que provocam efeitos profundos nas formas de participação da mulher na vida pública: uma desigualdade social abismal; uma hierarquia rígida em relação ao acesso aos direitos.

2. Se esta posição da mulher na estrutura de dominação tem efeitos muito evidentes na exclusão da mulher, todavia não pode ser pensada como uma determinação. Mas como um dado fundamental a ser tomando em consideração, tanto na análise do problema como na decisão de ações concretas para transformara posição das mulheres nos espaços de poder. O entendimento do funcionamento desta hierarquia e dos demais condicionantes estruturais possibilitam pensar construções estratégias de políticas que avancem em relação a políticas meramente procedimentalistas.

3. Desde os seus primeiros passos, a razão de ser do movimento feminista foi empoderar as mulheres (mesmo que o conceito tenha sido incorporado como vocabulários muito posteriormente). Se por uma parte, o movimento logrou conquistas indiscutíveis que atingiram as próprias estruturas de poder no mundo ocidental, por outra parte, tem sido muito tímido em interpelar mulheres para agirem no mundo público e, principalmente político. Butler, citada anteriormente oferece um caminho que credito promissor para pensar esta situação, quando diz que as mulheres não são só mulheres, ou quando se pergunta se é necessário um sujeito feminista. A presença feminista na arena política é desejável? Ou seria mais uma. Daí que a noção de perspectiva de Young possibilita pensar em formas inovadoras da relação entre feministas e não feministas, entre presença da mulher e presença da mulher que incorpora a idéia.

Em relação ao segundo grupo de questões, que chamei de caráter mais procedimental as idéias que proponho para reflexão são as seguintes:

1. A democracia liberal tal como existente no Brasil possui limitações estruturais para incluir novos sujeitos, principalmente, pelos limites que impõe à participação. Mas, mesmo tendo em conta estes limites, parece-me que não ocupamos todos lugares possíveis. Não esgotamos seus limites. Por, exemplo, a ausência da mulher na esfera política não pode ser posta unicamente na conta dos limites democracia liberal.

2. Na atualidade, há uma maligna tendência de ver as reformas políticas como a panacéia para os problemas da política brasileira. As reformas políticas estão focadas em duas questões: moralidade e aumento da eficácia dos agentes políticos. Não cabe aqui discutir se elas atingirão estes objetivos, mas certamente não mudarão em nada a estrutura das relações de poder que afastam as mulheres da esfera política.

3. Tomando como referência as questões até aqui levantadas penso que urge um programa de inclusão das mulheres na vida política, que não poder ser entendido como confecção de cartilhas ou campanhas publicitárias, mas, e eu estou convencida disto, num programa para dar voz as mulheres, construir espaços para que as mulheres falem. Dar a palavra para as mulheres e só as mulheres podem dar a palavra às mulheres, sem construir novas relações de poder. Esta certamente não é a ação suficiente, caminho das pedras, porque o caminho não há, mas certamente é essencial. Não é difícil fazer isto. É daquelas ações que depende da vontade política e de arcar com as conseqüências da desorganização que pode causar. Nós temos humildemente de reconhecer que como feministas as vezes encontramos confortáveis casas, que nos acolhem nos quarteirões identificados por Foucault.

4. Finalmente gostaria de concluir afirmando que é imperativo repensar o espaço público como um espaço de emancipação, diria de emancipações no plural, do quarteirão que a política do controle da peste bubônica tem limitado as mulheres historicamente, no que pese nossas grande e lutadas vitórias


Bibliografia:

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).
FOUCAULT, Miche. Les Anormaux. (Paris: Gallimard, 1999).

PHILLIPS, Anne, Dealing with Difference: A Politicis of Ideas, or a Politics of Presence? In: BENHABIB. Seyla. Democracy and Difference. (Princenton: Princeton University Press, 1996).

PINTO, Céli R. J. Foucault e as Constituições Brasileiras: quando a lepra e a peste se encontram com os nossos excluídos. In: Educação e Realidade, v. 24 n. 2 jul/dez 1999.
YOUNG, Iris. Inclusion and Democracy. ( Oxford: Oxford University Press, 2000).

REFLEXÕES SOBRE PROSTITUIÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE [1]

Almira Rodrigues[2]

Resumo: O presente texto visa a contribuir para uma reflexão sobre a prostituição na contemporaneidade, a partir de um diálogo com base nas perspectivas sociológica, psicanalítica e política. A autora desenvolve uma caracterização da compra e venda de serviços sexuais como um fenômeno singular e marcado pelas condições de gênero e de classe social. Trata da especificidade da prostituição como uma modalidade de relação afetivo-sexual, distinta das relações amorosas e eróticas não comercializadas e das relações de violência sexual. Com base em Sigmund Freud e Melanie Klein reflete sobre psicosexualidade e mecanismos psíquicos de sujeitos frente à comercialização das práticas sexuais. Por fim, considera as/os profissionais do sexo enquanto sujeitos políticos, cuja construção é (im)pulsionada pelas vivências sexuais e existenciais de marginalização e discriminação social.

Palavras chaves: prostituição, serviços sexuais, profissionais do sexo, relações afetivo-sexuais, mecanismos psíquicos.

Inicialmente é importante explicitar que este texto constitui um diálogo e uma articulação de perspectivas de cunho sociológico, psicanalítico e político. Nesse sentido, busco uma abordagem plural e aberta sobre relações afetivo-sexuais, processos psíquicos e projeto político acerca do fenômeno da prostituição. Os significados que perpassam tais acontecimentos são múltiplos e o meu objetivo é dar uma contribuição ao debate. Esta consideração torna-se mais expressiva se constatarmos que os significados não estão prontos, mas vão sendo construídos, solo e coletivamente, isto é, estão sempre em formação e transformação. Por fim, ressalto que se alguns significados ganham corpo e compartilhamento social, outros são próprios a cada sujeito com seu especial talento para criar seus significados e pô-los em circulação. [3]

1. Aproximações iniciais
Podemos começar nossa reflexão perguntando-nos por que o tema da prostituição é cercado de tantas suscetibilidades. Sabemos que esta discussão está marcada por visões moralistas e religiosas, que condenam a prática e particularmente as/os profissionais do sexo. Esta postura impede um aprofundamento do tema e confronta-se com uma perspectiva laica que vem se afirmando ao longo do processo civilizatório. Apesar disso, o embate entre as perspectivas laica e religiosa continua na ordem do dia e transparece nas polêmicas sobre o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por casais homossexuais, as cirurgias de mudança de sexo, as técnicas de reprodução humana assistida, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia passiva e ativa.

O fenômeno que estamos analisando, a compra e venda de serviços sexuais na contemporaneidade, envolve adultos, a partir de suas próprias decisões pessoais, implicando a assunção de responsabilidades, com seus ganhos e perdas. A prostituição não é legalizada nem criminalizada na legislação brasileira; considerada crime é a prática de exploração da prostituição por terceiros, intermediários e estabelecimentos comerciais (lenocínio).

É necessário distinguir a comercialização de serviços sexuais, envolvendo adultos como compradores e vendedores, de dois outros fenômenos sociais, ainda que possam estar entrelaçados em situações específicas. São eles: a exploração/abuso sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de mulheres/trabalho sexual escravo. Estes fenômenos estão cada vez mais visibilizados nas sociedades e são radicalmente diferentes da prostituição, por envolverem crianças e adolescentes - seres em formação e desenvolvimento biológico, psíquico e social -, e mulheres forçadas a trabalhar, sob ameaça e cárcere privado. As partes envolvidas em ambos os casos (crianças/adolescentes e trabalhadoras forçadas) são integralmente vulneráveis e se inserem em relações de poder constitutivamente assimétricas, de dominação e exploração, sendo ambos considerados crimes no ordenamento jurídico brasileiro.

Feita esta caracterização preliminar, destacamos que a comercialização dos serviços sexuais apresenta importantes marcas de sexo/gênero. Historicamente, as mulheres oferecem esses serviços e os homens os compram. Embora esta seja a equação social típica é importante considerar que mulheres também compram serviços sexuais (ainda que seja um fenômeno bem menos expressivo) e homens também vendem serviços sexuais, basicamente para outros homens, fenômeno em franca expansão nas sociedades ocidentais. Constata-se, concomitantemente, que a homossexualidade masculina, por muito tempo restrita a contextos de prostituição, tem adentrado de forma significativa o contexto das relações amorosas e das relações eróticas não comercializadas nas últimas décadas.

Na cultura patriarcal as representações e práticas sociais são fortemente marcadas pelo gênero e no âmbito da sexualidade as mulheres são socializadas para “conter” suas pulsões sexuais e para “liberá-las” quando conectadas a uma “história de amor”. Nessa medida, essa cultura poderia contribuir para explicar a pouca expressão de mulheres como clientes de serviços sexuais e a “transgressão” das mulheres enquanto profissionais do sexo. Os homens, por sua vez, são estimulados a vivenciar sua virilidade, no imaginário social fortemente associada ao “escoamento” de suas pulsões sexuais que podem exercer seja na posição de clientes seja na de prestadores de serviços sexuais.

Outra dimensão a considerar diz respeito à condição de classe e hierarquia dos serviços prestados. Reproduzindo a lógica de mercado, existem serviços e clientes de tipo A, B, C, D e E. Os espaços de comercialização do sexo expressam estas possibilidades: residências, hotéis, motéis, boates, bares, ruas, rodovias. Em tese, quanto maior o poder econômico de cada parte (profissional do sexo e cliente), maior a autonomia e a capacidade de negociação de decisões e de práticas sexuais.

Embora certa delimitação do fenômeno seja fundamental para se avançar nas reflexões é importante pensar em outros significados do termo prostituição, para além de um trabalho e profissão. No imaginário e nas representações sociais, a nomeação de putas/prostitutas é utilizada para mulheres que vivem sua sexualidade de forma livre, com múltiplos parceiros e/ou que dissociam amor e sexo. Em última instância, a nomeação tem a ver com o exercício da sexualidade das mulheres, diferentemente de um padrão social esperado e cultivado para elas, qual seja, o padrão conjugal e monogâmico. O exercício da sexualidade separado de uma história de amor é considerado majoritariamente como um território masculino, o que significa o controle social da sexualidade das mulheres, inclusive ou sobretudo, para garantir a segurança da linhagem paterna. Estes sentidos, embora passíveis de algumas transformações e podendo ser relativizados, parecem ser ainda predominantes na contemporaneidade.

2. Relação sexual comercializada como um tipo de relação afetivo-sexual
Considerando um sentido estreito de sexualidade, enquanto interação e prática sexual, e um sentido amplo de afetividade, envolvendo toda e qualquer emoção e sentimento, as relações sexuais comercializadas constituem uma das três formas básicas de relações afetivo-sexuais. São elas: a) relações afetivo-sexuais de reciprocidade e de iguais posições, onde os sujeitos se escolhem mutuamente como objetos amorosos e eróticos para vivenciar um projeto amoroso ou um encontro erótico sem continuidade e sem aprofundamento; b) relações afetivo-sexuais comercializadas, pressupondo no mínimo duas posições, compradores e vendedores de serviços sexuais, além da possibilidade de intermediários; e c) relações afetivo-sexuais de força (estupro e atentado violento ao pudor) envolvendo agressores e vítimas, estas majoritariamente mulheres. [4]

Com base em uma visão ética, de respeito à autonomia e direito de escolha dos sujeitos, as relações de força constituem uma violação radical dos direitos humanos e, especificamente, dos direitos sexuais. Em termos psicanalíticos, os violadores/agressores são perversos à medida que coisificam o outro, e, pela força, o submete à sua satisfação e poder. Apesar de esta prática ser criminalizada por legislação específica no Código Penal brasileiro, são reduzidos os casos em que os agressores são efetivamente punidos e em que as vítimas têm assistência médica e psicológica adequadas pelo sistema público de saúde.

Por outro lado, a reciprocidade nas relações de livre escolha não garante relações de respeito e de integridade das pessoas envolvidas. Assim é que existe legislação de proteção às relações de namoro, coabitação e casamento, mediante o combate à violência doméstica e familiar[5]. Na sociedade brasileira, e em larga escala mundial, é comum a ocorrência de maus tratos, espancamentos e ameaças às parceiras, praticados pelos seus parceiros, sendo recorrente o assassinato de mulheres por (ex) namorados, (ex) companheiros e (ex) maridos por elas decidirem romper a relação que iniciaram de comum acordo em tempos passados.

Considerando as três modalidades, as relações afetivo-sexuais comercializadas estão a descoberto, à exceção do dispositivo no Código Penal criminalizando a exploração e a manutenção de comércio sexual por terceiros. No entanto, os intermediários e os estabelecimentos onde se pratica a comercialização de serviços sexuais funcionam amplamente, fazendo uso de estratégias clandestinas, o que acaba favorecendo o funcionamento de negócios escusos e as práticas de corrupção ativa e passiva.

A partir de uma perspectiva psicanalítica, o que podemos pensar sobre as relações afetivo-sexuais, comercializadas ou não, enquanto relações em que vigoram “escolhas e acordos”, independentemente de sua natureza e qualidade?

No que se refere às relações recíprocas e de iguais posições – relações amorosas e eróticas – podemos constatar que embora apontem para uma simetria de posições, ambos são sujeitos e objetos amorosos e eróticos, trata-se de uma simetria formal. Os sujeitos envolvidos não dispõem de iguais recursos psíquicos, intelectuais, financeiros e nem sempre ou quase nunca negociam direitos, interesses e necessidades em igualdade de condições. Assim, tais relações podem configurar-se como relações de dominação, com comprometimento do diálogo e com predomínio de uma parte sobre a outra, seja recorrentemente ou alternadamente.

Quanto à escolha do objeto amoroso e erótico, a psicanálise nos diz que esta não é uma escolha racional, desconstruindo a concepção do “eu” como unificado, estável e livre de conflitos; mas sim que é uma escolha permeada de fixações, traumas, recalques, identificações. Não só as escolhas amorosas e eróticas seguem este modelo, mas as decisões e escolhas existenciais de uma forma geral. Sigmund Freud enfrentou fortes resistências pela construção da teoria do inconsciente que explica que a maior parte da nossa vida psíquica transcorre para além de nossa consciência e controle. Elaborou a idéia de que o funcionamento psíquico ocorre sob os signos do princípio do prazer e do princípio da realidade e que cada um se defronta, desde o nascimento, com arranjos singulares de suas pulsões de vida e pulsões de morte.

Freud construiu uma teoria da sexualidade como expressão complexa e conflitiva de um psiquismo em desenvolvimento. Afirma que meninos e meninas têm desejos e fantasias sexuais desde o nascimento. No texto Sobre una degradación general de la vida erótica (1912) que integra as Aportaciones a la Psicologia de la Vida Erótica (1910-1912) Freud fala de uma impotência psíquica para o amor. Afirma que o comportamento amoroso normal pressupõe a união da corrente afetiva e da corrente sensual, ressaltando, no entanto, que são poucas as pessoas que conseguem uni-las. Nos homens, a corrente sensual procura apenas objetos que não rememorem as imagens incestuosas proibidas – como defesa, eles se utilizam da depreciação do objeto sexual e de uma supervalorização do objeto incestuoso e seus representantes. Já as mulheres, devido a uma longa contenção da sexualidade e de seu anseio de sensualidade em fantasia, ficam incapazes de desfazer a conexão entre a atividade sensual e a proibição, sendo a frigidez a expressão dessa impotência psíquica.

Passado um século dessas considerações, que mudanças podemos constatar no campo da expressão amorosa e erótica dos sujeitos, mulheres e homens? Tudo indica que uma afirmação da diversidade sexual, a autonomização da sexualidade frente a outras dimensões da existência, além de uma maior publicização e politização de expressões amorosas e eróticas. Verificam-se, também, movimentos de expansão das fantasias sexuais e mesmo de sua atuação. Parceiros exploram juntos suas sexualidades, atentando mais para a satisfação de ambos, e a sensualidade das mulheres é objeto de intensa exploração na sociedade. A contemporaneidade favorece a expansão das fantasias sexuais, mediante a rede mundial de computadores, o comércio de produtos em sex shoppings, e a cobertura da mídia que estimulam a constituição de sujeitos de desejo próprio e, paradoxalmente, formatam sujeitos de desejo alheio.

Quanto às relações afetivo-sexuais comercializadas serão analisadas em tópico específico, a seguir.

3. Comercialização de serviços sexuais - transação profissionalizada e especializada na realização de desejos, necessidades e fantasias sexuais?
A comercialização de serviços sexuais abre um campo para a realização de fantasias e para a satisfação das necessidades e desejos sexuais do cliente, por parte das/dos profissionais do sexo: a fantasia é a de que o pagamento por tais serviços assegura a satisfação sexual total. A satisfação em pauta, exclusiva ou prioritária, é a do cliente. No entanto, uma aproximação das relações comercializadas com as relações sexuais não comercializadas pode ser pensada. As fantasias de plena gratificação sexual também circulam nas relações amorosas e eróticas, sendo que nestas a moeda de troca dos sujeitos amorosos e eróticos é mais equivalente estando em questão a satisfação de ambos. No entanto, é fundamental destacar que ambas as modalidades podem ser vivenciadas como espaços privilegiados de poder - enquanto produção do prazer e do gozo -, de preenchimento da falta constitutiva do existir e uma forma eficaz de tamponar temporariamente a angústia.

Podemos nos perguntar que outros processos psíquicos podem se atualizar no contexto específico das relações afetivo-sexuais comercializadas, relações socialmente discriminadas e marginalizadas. Embora seja uma prática social comum, a prostituição tende a ser negada. Sua existência e diversidade são invisibilizadas como atestam a inexistência de regulamentação da prática. Quando reconhecida, constata-se uma cisão mediante a depreciação das/dos profissionais do sexo e a proteção dos clientes, via anonimato. Não se fala de quem faz uso de serviços sexuais, apenas de quem os vende. Quem faz uso são clientes, uma nomeação genérica que se adequa a quem compra quaisquer bens e serviços. Ou seja, a depreciação serve para quem vende serviços sexuais, mas não para quem os compra.

Por fim, as representações sociais que depreciam e desqualificam as/os profissionais do sexo podem ser lidas como expressão de mecanismos de projeção. Os sujeitos projetam para as/os profissionais do sexo o que sentem como tendo de sujo, podre e destrutivo, liberando-se de se defrontarem com determinados aspectos de si próprios.

Nesse sentido, as/os profissionais do sexo constituem um campo não apenas para as necessidades e fantasias sexuais do outro, mas também um “saco de pancada” para a sociedade e, em especial, para os sujeitos com rígidos padrões morais, religiosos e ideológicos, que propõem a exclusão e o aniquilamento de “partes” que entendem corrompidas, perturbadas e perturbadoras do contexto social. Assim, quanto mais rígidos os sujeitos, mais precisarão fazer uso de mecanismos de defesa de feição esquizo-paranóide: negação, cisão, projeção (Klein, 1936, 1946)[6]. E, traçando interconexões, podemos pensar que quanto mais rígida uma sociedade, mais seus indivíduos farão uso desses mecanismos para se protegerem e ocultarem seus conflitos e desconfortos.

Por outro lado, quanto mais as/os profissionais do sexo introjetarem as representações dominantes acerca de sua condição profissional, de escória social expressa no xingamento de maior gravidade “filho da puta”, mais ficam destruídas internamente, vivenciando profundos conflitos e sofrimentos psíquicos.

No que tange às motivações para a venda de serviços sexuais, a dimensão econômica é concreta tanto para quem sustenta necessidades básicas e vitais, quanto para quem sustenta padrões de vida elevados. Esta diferenciação se mantém historicamente e tende a ser forte elemento de julgamento social das/dos profissionais do sexo: socialmente é menos reprovada a prestação de serviços sexuais como forma de garantia da sobrevivência básica, do que como forma de acesso a um alto padrão de vida. Isso alude à hipocrisia e ao absolutismo à medida que os sujeitos se sentem no direito de julgar em que condições “autorizam” os acontecimentos na vida dos outros.
Seguindo a premissa de que nossas escolhas não são plenamente racionais, podemos levantar a questão: e o que tem a mais, ou junto com as motivações financeiras na “escolha” de vender serviços sexuais? Entendo não ser possível avançar nesse rumo, pois não creio em um psiquismo específico das/dos profissionais do sexo. Suas histórias são singulares e individuais: abandono, frustrações, violências, prazeres, idealizações e tudo o mais que constitui a vida de seres humanos.

E quanto às motivações para a compra de serviços sexuais? Pode-se pensar que estes sujeitos (que têm permissão interna para a compra desses serviços) não têm outras formas de vivenciar relações sexuais além destas ou que têm satisfação exatamente em relações sexuais comercializadas. Para além dessas evidências, outros significados também têm que ser buscados nas histórias singulares de cada sujeito, que tem nessa forma uma possibilidade de gratificação assegurada.

4. Prestação de serviços sexuais como campo profissional e de construção de sujeitos políticos
A comercialização de serviços sexuais apresenta diferentes formas de institucionalização conforme os países. Existem países em que a prostituição é considerada crime, a exemplo dos Estados Unidos da América; outros que legalizaram a prática, como Suécia, Holanda, Alemanha, Dinamarca e Noruega. Em muitos outros países a legislação não legaliza nem criminaliza a prostituição, a exemplo do Brasil e da Espanha, abrindo flancos para abusos de toda ordem praticados contra as/os profissionais do sexo, por parte de clientes, de intermediários e de policiais (violência física, psíquica, sexual e extorsão).

É interessante constatar que os países nórdicos são os que mais avançaram na discussão e legalização da prostituição. Na Suécia, desde 1982 a prostituição é considerada uma atividade comercial, sendo que em 1999 foi aprovada uma legislação proibindo a compra de serviços sexuais (mas não a venda) como forma de reduzir a comercialização. Na Holanda, desde 2000 a prostituição é considerada um trabalho com direito a seguridade social; os bordéis são legalizados e seus proprietários pagam impostos e o seguro social das prostitutas. Na Alemanha, a prostituição é legalizada desde 2002 e as profissionais têm direitos trabalhistas. Na Dinamarca as prostitutas pagam impostos, mas não têm direito a assistência médica nem a seguro desemprego. Na Noruega, desde janeiro de 2009, vem sendo aplicada uma lei como a sueca. [7]
No Brasil, existe uma proposição legislativa que tramita na Câmara dos Deputados visando a legalização e regulamentação da atividade de “Profissional do Sexo”: prevê o pagamento “pela prestação de serviços de natureza sexual”; e propõe a descriminalização da intermediação e da manutenção de estabelecimentos de exploração do sexo.[8] O projeto conta com o apoio da Rede Brasileira de Prostitutas, criada no I Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro. [9]

A Rede, na Carta de Princípios divulgada em seu IV Encontro, realizado em fins de 2008 no Rio de Janeiro, defende a prostituição como profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos; repudia a criação e existência de zonas de confinamento, o controle sanitário, a vitimização, a exploração, a discriminação e o preconceito, e defende o trabalho sexual como um direito sexual. Desde 1989, a Rede realiza parcerias com o Programa Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde, que reconhece o seu importante papel na política pública de prevenção e combate ao vírus e à doença. Mediante a atuação da Rede, a atividade de profissional do sexo passou a ser considerada na Classificação Brasileira de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego.

A missão da Rede, enquanto sujeito político, é a de “Promover a articulação política do movimento organizado de prostitutas e o fortalecimento da identidade profissional da categoria, visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da discriminação e a melhoria da qualidade de vida na sociedade” (conforme consta da página inicial do site http://www.redeprostitutas.org.br/). Em tese, as/os profissionais que politizam seu cotidiano têm melhores condições e recursos para lidar com seus conflitos, para construir suas identidades e se inserir de forma digna e produtiva na sociedade.

Fica uma importante questão a ser colocada: as relações de compra e venda de serviços sexuais são constitutivamente relações assimétricas de poder, relações perversas, de coisificação e instrumentalização, ou podem assumir feições simétricas em que as partes se respeitem mutuamente e realizem acordos, com base em interesses e oportunidades? Penso que a comercialização de serviços sexuais não exclui a possibilidade de construção de relações mais igualitárias e de respeito. Mas esta é uma construção a dois, além de abranger o reconhecimento e a proteção de um coletivo muito maior, Estado e sociedade. Esta é a luta das entidades de profissionais do sexo em todo o mundo, e no Brasil, o movimento tem acumulado ganhos nas últimas duas décadas embora ainda tenha muitos desafios pela frente.

5. Considerações finais
A partir das reflexões realizadas, podemos constatar a especificidade das relações afetivo-sexuais comercializadas bem como do projeto político das organizações de profissionais do sexo. Ou seja, em uma perspectiva sociológica e política essas relações e esse projeto se afirmam, buscando, respectivamente, um reconhecimento social e uma condição de cidadania. Como contraponto, realizamos uma desconstrução da idéia de psiquismos específicos de profissionais do sexo e de compradores de serviços sexuais. Embora descartemos essa idéia privilegiando a história singular de cada um, podemos evidenciar alguns processos psíquicos vivenciados pelos sujeitos frente ao fenômeno da prostituição.

Neste texto evidenciamos que as relações de força e de violência sexual são as únicas constitutivamente perversas, por sua unilateralidade e impossibilidade de acordo e de troca em qualquer sentido. Já as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas podem ou não assumir um caráter perverso, dependendo de como os sujeitos envolvidos se relacionam.
Outros paralelos podem ser traçados entre as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas. A comercialização de serviços sexuais favorece experiências parciais e cindidas, para ambas as partes envolvidas (profissionais do sexo e clientes), tanto no sentido da cisão corpo e psiquismo, quanto da cisão sexualidade e afetividade. Esta tendência parece ser bem expressiva por sustentar-se na mercantilização, sendo que ambas as partes têm suas vivências existenciais para além da compra e venda de serviços sexuais. Já as relações não comercializadas sob a feição de encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento, se por um lado também apontam para essa tendência de parcialidade e cisão, por outro, apontam igualmente para uma equivalência entre os sujeitos que compartilham seus desejos e prazeres instantâneos.
É interessante observar que se ambas as situações – relações sexuais comercializadas e encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento - podem favorecer vivências parciais e cindidas, elas não impedem, entretanto, a possibilidade de desenvolvimento de um vínculo amoroso entre as partes envolvidas, ou uma vivência mais integrada entre corpo e psiquismo e entre afetividade e sexualidade, por uma ou ambas as partes. Porque, o que conta, fundamentalmente, é como cada sujeito, seja na posição de profissional do sexo, de cliente e de sujeito erótico, costura suas vivências, memórias, desejos, fantasias, projetos.

O oposto de tais situações, em tese, são as relações amorosas, em que os sujeitos buscam a continuidade e o aprofundamento do vínculo, mediante a construção de projetos de futuro. Estas relações tendem a acolher outros mecanismos psíquicos, como o fusionamento e o medo da perda do objeto amoroso.

Podemos nos perguntar, no entanto, o que significa a inexistência de uma lei social que regulamente a compra e venda de serviços sexuais. Este fato alude a um território sem lei, onde vigora a lei do mais forte, algo muito primitivo, selvagem. Um território onde as pulsões libidinais e agressivas têm livre curso, sem limites e sem cuidados e em que não há um terceiro a quem recorrer quando do descumprimento de acordos e da efetivação de abusos de todas as ordens. O terceiro neste caso, simbolizado pelo Estado e pela Justiça, também cumpre uma função especial, de mediação e de proteção às partes envolvidas; e para que cumpra este papel precisa estar investido de um poder efetivamente público e não privado. Essa linha de reflexão merece investigações e possibilita aprofundar as equivalências e os trânsitos entre as condições sociais, psíquicas e políticas.

Outra questão substantiva com a qual concluo e paralelamente deixo em aberto nossas reflexões é a seguinte: podemos traçar algum paralelo entre a ação política do movimento de profissionais do sexo e o trabalho psicanalítico, na medida em que ambos propõem a superação de processos de vitimização e a assunção de escolhas e de responsabilidades, com ganhos e perdas? Creio que sim, que podemos traçar estes paralelos. Em uma perspectiva ética, ação política e trabalho psicanalítico possibilitam o desvelamento e a ruptura com processos de heteronomia e de submissão; e a construção de sujeitos autônomos com liberdade de escolha (a possível em contextos de realidade), a partir do reconhecimento de desejos e projetos, próprios e alheios. Mas, estes cenários são apenas possibilidades e não garantias. A distinção, no entanto, substantiva e decisiva, fica por conta de que apenas a psicanálise pode promover o desvelamento de ganhos e perdas inconscientes em nossas práticas cotidianas e em nossas escolhas existenciais.

Reflexiones sobre la Prostitución en la contemporaneidad
Resumen: El presente texto intenta contribuir a la reflexión sobre la prostitución en la contemporaneidad, a partir de un diálogo basado en la triple perspectiva sociológica, psicoanalítica e política. La autora desarrolla una caracterización de la compra e venta de servicios sexuales como un fenómeno sui generis e marcado por las condiciones de género y de clase social. Trata de la especificidad de la prostitución como una modalidad de relación afectivo-sexual, distinta de las relaciones amorosas y eróticas no comercializadas y de las relaciones de violencia sexual. Utilizando el enfoque de Sigmund Freud e Melanie Klein reflexiona sobre psico-sexualidad y mecanismos psíquicos frente a la comercialización de las prácticas sexuales. Finalmente, considera las/los profesionales del sexo como sujetos políticos, cuya construcción es impulsada por las experiencias sexuales e existenciales de marginalización y discriminación social.

Palabras claves: prostitución, servicios sexuales, profesionales del sexo, relaciones afectivo-sexuales, mecanismos psíquicos.


Reflections about the Prostitution in the Contemporaneity
Abstract: This article intends to contribute to the discussion about the prostitution in the contemporaneity, through the dialogue between the sociological, psychoanalytical and political perspectives. The author analyses the purchase and sale of sexual services as a singular phenomenon, marked by gender and the social conditions. She examines the prostitution specificity as a form of affection and sexual relationships, different from no commercialized lovers and erotic relationships, and from sexual violent relationships. Based on the concepts of Sigmund Freud and Melanie Klein, she analyses about psychosexuality and psychic mechanisms face the commercialized sexual practices. Finally, she takes into consideration the sexual professionals as a political group, constituted by the sexual and existential experiences of social marginalization and discrimination.

Keywords: prostitution, sexual services, sex professional, affection and sexual relationships, psychic mechanism.



REFERÊNCIAS
1. FREUD, Sigmund. Sobre una degradación general de la vida erótica (1912). Aportaciones a la Psicología de la Vida Erótica (1910-1912). Obras Completas, Vol. I. Editorial Biblioteca Nueva: Madrid. 1948.
2. KLEIN, Melanie. Contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos (1934). In: Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32)
3. _____________. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. ( 1946). In: Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32)
4. RODRIGUES, Almira. Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso. 1992. 144p. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF.
5. __________________. Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas. 1998. 272p. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF.



NOTAS

[1] A elaboração do presente texto foi motivada pelo convite para debater o vídeo “A Saga das Mulheres Candangas”, de Denise Caputo, sobre a prostituição de mulheres na construção de Brasília. O debate foi promovido pelo Museu Vivo da Memória Candanga, em Brasília, em 21/03/2009. Este evento, por sua vez, mobilizou a realização de um debate sobre Prostituição na Contemporaneidade, organizado pela Comissão de Comunidade e Cultura da Sociedade de Psicanálise de Brasília, em 19/03/2009. As reflexões apresentadas pela autora foram ampliadas e aprofundadas a partir dos debates e das discussões realizadas com colegas, aos quais agradece.

[2] Socióloga, Mestre e Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e Analista em Formação pelo Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB), filiada à Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRASPI), à Federación Psicoanalítica de América Latina (FEPAL), e à Internacional Psychoanalytical Association (IPA).

[3] Utilizo deliberadamente várias posições de fala: a primeira pessoa do singular para referir-me a compreensões muito pessoais; a primeira pessoa do plural, quando entendo poder compartilhar as idéias com leitores, e, finalmente, utilizo o pronome indefinido para contextos e movimentos mais gerais.

[4] Desenvolvi esta classificação na minha Dissertação de Mestrado em Sociologia intitulada Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso (1992) e na minha Tese de Doutorado, também em Sociologia, intitulada Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas (1998).

[5] A Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi aprovada em 2006, depois de mais de 30 anos de denúncias da violência contra as mulheres e da luta dos movimentos feministas e de mulheres por políticas públicas de prevenção e combate a violência doméstica e familiar na sociedade brasileira.

[6] Melanie Klein formula a idéia desses mecanismos como recursos primitivos do desenvolvimento psíquico. A elaboração da posição esquizo-paranóide possibilita a entrada na posição depressiva, em que se coloca a integração dos objetos bom e mau, a perda, a culpa e a reparação. Durante a vida, os sujeitos vivenciam flutuações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva.

[7] Ver entre outras notícias constantes de sites especializados a matéria “Prostitutas legalizadas, clientes clandestinos” (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2009/03/02/ult581u3071.jhtm).

[8] Este projeto foi apresentado pelo Deputado Fernando Gabeira, em 2003.

[9] A Rede Brasileira de Prostitutas (http://www.redeprostitutas.org.br/) congrega atualmente quase trinta organizações no País, integra a Red de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe (http://www.redtraxex.org.br/) e se articula com o movimento europeu e norte-americano. Uma de suas importantes referências é o jornal Beijo da Rua (http://www.beijodarua.com.br/)

.Almira Rodrigues
SHIS QI 09, Lote E, Bloco I, Sala 209
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Fone: (61) 9296-2890 e (61) 3366-3385
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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Homens e mulheres estão longe de ter igualdade no trabalho, diz OIT

11/06/2009
da Agência Brasil

Estudo divulgado hoje (11) pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) revela que, mesmo com avanços obtidos nos últimos anos, a condição feminina no mercado de trabalho "está longe" da igualdade em relação aos homens.

O relatório O Desafio do Equilíbrio entre Trabalho, Família e Vida Pessoal mostra que a maior participação feminina no mercado de trabalho gera o desafio de se criar condições para que as mulheres possam concorrer de forma mais justa com os homens pelos postos de trabalho.

Elaborado em parceria com a Secretaria Especial de Política para as Mulheres, o documento aponta que, dentre os fatores que contribuem para o quadro de desigualdade, está a maior dificuldade para as mulheres de conciliar trabalho e família.

Isso porque, conforme observa o estudo, há uma mudança em ritmo muito lento da divisão sexual do trabalho doméstico. "O modelo homem-provedor e mulher-cuidadora ainda vigente permite que a mulher continue arcando em forma unilateral, quando não exclusiva, com as atividades de cuidado e assistência aos membros da família e seu engajamento no mercado de trabalho permanece marcado por esse papel", diz trecho da conclusão do estudo.

Para a OIT, essa característica "se evidencia tanto através do exame das carreiras que são tipicamente femininas, quanto pelas dificuldades de conciliar maternidade e profissão". Para mudança desse quadro, a OIT sugere, por exemplo, a ampliação de políticas públicas voltadas para as mulheres, como a construção de creches públicas e pré-escolas.

"Os serviços públicos de cuidado com crianças, como é o caso de creches e pré-escolas, são fundamentais neste aspecto, dada sua possibilidade de também atuar como mecanismos de diminuição do peso e da quantidade de atividades de cuidado realizadas pela família", diz o relatório.

"Como são as mulheres as protagonistas principais dessas atividades, a existência e a ampliação desses serviços também para os homens podem ajudar a reorganizar o modelo homem-provedor e mulher-cuidadora, na medida em que ampliam o tempo que as mulheres podem dedicar ao trabalho remunerado e/ou à sua vida pessoal."

O relatório sugere ainda que as políticas de equilíbrio entre trabalho, família e vida pessoal devem compatibilizar os trabalhos não remunerados com os remunerados, por meio de ações que tornem o exercício do trabalho mais compatível com as responsabilidades familiares, e reconhecer tanto o papel econômico e produtivo das mulheres, quanto o papel dos homens como cuidadores.

O estudo compreende as relações de trabalho na América Latina e no Caribe, onde há mais de 100 milhões de mulheres inseridas no mercado de trabalho.

sábado, 30 de maio de 2009

Reflexões sobre a Reforma Política

O cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília , nessa entrevista, nos traz várias reflexões sobre a Reforma Política de verdade. Lista fechada, financiamento público, voto distrital, "lista suja", cota para mulheres. Enfim, chance zero de acontecer. Lamento muito, mas não gostaria que essa discussão caísse no vazio. Deve ser motivo de discussão sempre. Temos que provocar a vontade política de acontecer.

Bjocas, Irina Storni

UOL Notícias - A lista fechada seria benéfica para o Brasil?
David Fleischer - A lista fechada seria uma grande revolução na maneira de eleger deputados e reduziria muito os custos da campanha. Atualmente, 90% dos eleitores votam em nomes e não nos partidos - embora essas duas opções sejam viáveis. O candidato faz a campanha individual durante todo o tempo e nem dá bola para o partido. Ele só faz propaganda do seu número, nunca do número da legenda. Com a propaganda feita somente pelas legendas, diminuiriam os custos.

UOL Notícias - Com a lista fechada, mudaria o perfil dos deputados eleitos?
Fleischer - Se fechar a lista, você tiraria do processo todos os grupos que elegem seus candidatos. Igrejas evangélicas concentram seus votos em um único candidato e o elegem. Sindicatos e grupos étnicos também - como os japoneses em São Paulo e no Paraná. Policias militares são outro exemplo disso. No Estado de São Paulo você tem quatro ou cinco policiais militares deputados, porque se juntam todos os votos dos policiais em poucas pessoas. Com a lista fechada, essas votações por grupo acabariam e você fortaleceria o partido, que teria mais controle e disciplina.

UOL Notícias - Há países que podem servir de modelo ao Brasil?
Fleischer - A lista fechada é usada em 90% dos países com voto proporcional. Só tem uns dois ou três países que usam a aberta além do Brasil, como a Finlândia. A lista aberta é uma aberração. Usamos esse sistema desde 1950 e agora é muito complicado você mudar isso. O problema da mudança é que os deputados são muito ansiosos, eles têm medo de não se reeleger. Atualmente a renovação é de 50%. Com a lista fechada, a renovação pode ser menor, de 20 ou 30%. Ela seria uma grande revolução e reduziria muito os custos.

UOL Notícias - Uma crítica comum à lista fechada é a de ela concentrar o poder na mão de "caciques" partidários e tirar a decisão dos nomes da mão do povo. O senhor concorda com a crítica?
Fleischer - Eu acho que falar que o povo escolhe é balela, é um mito. Muitas vezes você vota no fulano que vai trabalhar para eleger beltrano, por causa das coligações na lista aberta. E a lista fechada não deveria impor exclusivamente ao partido a escolha dos candidatos. Essa nova versão do projeto não estabelece as regras de como devem ser escolhidos os candidatos que farão parte da lista. Os líderes não deveriam impor a decisão, pois os partidos que usarem prévias vão ganhar muito apoio. Isso seria como um estímulo à participação das pessoas na política. O partido mais inteligente vai organizar uma prévia para aumentar muito as filiações. Os partidos que usarem a escolha dos caciques, que devem ser uns quatro ou cinco partidos, estão fadados a perder a eleição.

UOL Notícias - Que outras mudanças poderiam aparecer com a lista fechada?
Fleischer - Fechando a lista, poderia se embutir uma cota para mulheres nela. É como ocorre na Argentina, em que uma mulher tem que constar na lista no terceiro, quinto e sétimo lugar. E é possível a aprovação de uma proposta assim no Brasil, pois as mulheres estão pressionando cada vez mais. Essa proposta ajudaria na inserção da mulher. A Argentina, em 2002, tinha mais ou menos 6% ou 7% de mulheres na política. Agora está em quase 30%.

UOL Notícias - O financiamento público será viável no Brasil?
Fleischer - O que está na proposta dá menos de R$ 1 bilhão para todas as eleições. E nós sabemos que em 2006 elas custaram entre R$ 10 e 15 bilhões. Então é claro que esse valor é insuficiente. Acho o financiamento público uma ideia boa, mas não vejo como vigorar com esses valores.

UOL Notícias - O financiamento público é capaz de inibir o "caixa dois" e deixar a eleição mais equilibrada?
Fleischer - Não, infelizmente. O problema do caixa dois é que 90% das empresas fazem caixa dois interno para fugir do fisco. Enquanto ele não for eliminado de dentro das empresas, vai ser muito difícil eliminar a prática na campanha. Perguntaram-me por que há pouco caixa dois em campanhas nos Estados Unidos ou no Canadá. É porque poucas empresas fazem isso internamente, pois lá isso dá multa e prisão. Então, não tem caixa dois eleitoral nesses países.

UOL Notícias - É possível aprovar essa reforma para que ela tenha efeito nas eleições presidenciais de 2010?
Fleischer - Eu acredito que algumas partes possam ser aprovadas para 2010. A proposta de lista fechada, sem regras de como fazer a lista, pode passar.O financiamento público de campanha também, pois essas duas propostas são casadas. E outra que eu tenho certeza que vai passar é uma proposta para permitir uma janela, em abril ou maio do ano da eleição, para os políticos pularem de partido como quiserem. Congressistas dizem que há dificuldade para aprovar a janela, pois ela necessitaria de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) - e não somente de um projeto de lei ordinária, como no caso do financiamento e da lista.

UOL Notícias - Isso não dificultaria a aprovação de uma janela ainda neste ano?
Fleischer - Mesmo precisando de uma PEC, muita gente quer mudar de partido. Então, se houver vontade, não deve haver dificuldades.

UOL Notícias - Quais outros pontos seriam primordiais para uma reforma política "de verdade"?
Fleischer - Uma reforma de extrema importância, que tem zero chance de ser aprovada, é a da lista suja. A proposta seria a de uma pessoa condenada em primeira instância não poder ser eleita. Porque você tem muita gente que se elege somente para ganhar a imunidade. Outra é a cláusula de barreira de 1%. Parece baixinha, mas em 2006 teria eliminado sete partidos. Proibir as coligações seria outro passo. Mas a federação inteira teria que estar junto para isso ser viável.

UOL Notícias - Como fica a situação dos partidos menores com essas mudanças?
Fleischer - Isso depende da ordem que os partidos colocarem os candidatos. Mas isso com certeza vai enfraquecer um pouco alguns partidos. O PC do B não tem voto suficiente para eleger ninguém em nenhum Estado, mas concentra todos seus votos em um candidato aqui, como ele sempre elege três ou quatro em coligações, como no caso do PT. Na lista fechada, vai complicar a situação.

UOL Notícias - E o voto distrital, é viável no Brasil?
Fleischer - O voto distrital é defendido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma parte do PSDB. Seria uma mudança tão drástica que não emplacaria. O que poderia emplacar é o sistema misto, a semelhança do modelo alemão, onde metade deles seria eleito pelos Estados e outra metade pelos distritos. Isso foi muito discutido na constituinte, mas não emplacou.

UOL Notícias - Por que o voto distrital não emplacou?
Fleischer - Porque com o voto distrital você elimina o candidato que capta voto pelo Estado inteiro, como o Delfim Neto [economista, ministro da Fazenda na ditadura militar, Delfim não conseguiu se reeleger deputado em 2006 pelo PMDB]. Com o sistema distrital você estaria, como muita gente diz, elegendo deputados-vereadores. Mas, na prática, metade dos deputados já é eleita em redutos, de mais ou menos 20 mil ou 25 mil eleitores. Muitas vezes é um ex-prefeito, que regula a região, manda nela. E eles trabalham duramente na Câmara somente para favorecer esse reduto que o elegeu.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Teses 2 A mulher em situação de vulnerabilidade social

As relações entre homens e mulheres ao longo do desenvolvimento da presença humana na terra não foram sempre iguais. Dessa forma, para que não se perca o foco sobre as teses a serem discutidas no encontro nacional do Partido, algumas premissas devem ser explicitadas.

A primeira diz respeito à necessidade de se levantarem questões sobre a participação da mulher na política, sem desmerecer, no entanto, a importância da presença masculina. No campo democrático, o que vale são as lutas por temas que unam mulheres e homens na continuidade histórica de responsabilidades humanas e sociais. É o equilíbrio entre mulheres e homens, mais do que cada sexo fez separadamente, que no final das contas importa.

O segundo ponto se refere ao tratamento da questão de gênero. O destaque que se dá esse quesito é uma forma de enfatizar a dimensão social e, portanto, histórica, das concepções cristalizadas relativas às desigualdades entre os gêneros feminino e masculino. No caso da mulher, os inúmeros trabalhos dedicados aos estudos de gênero vêm contribuindo enormemente para o macroentendimento das relações sociais e suas variações ao longo da história.

O terceiro ponto a ser observado diz respeito à relação gênero/meio ambiente, na qual se destaca a concentração da pobreza em áreas de vulnerabilidade ambiental. A distribuição desigual da população sobre os recursos naturais é resultado do processo econômico que destina as melhores localizações para quem pode pagar restando aos setores de baixa renda, as piores parcelas do território urbano.

Nesse contexto, a mulher tem que multiplicar seus esforços para garantir sua sobrevivência social, sobretudo nos campos da segurança e da saúde pública.


1. Mulher e sociedade no século XXI

O conceito ocidental de organização social predominou sobre o resto do planeta, de características patriarcais responsáveis pelo formato desigual das relações existentes entre homens e mulheres. Com o tempo, essas relações patriarcais foram se fragilizando no Ocidente, abrindo brechas, ou seja, espaços de lutas nos quais as mulheres se inseriram para lograr relações de gênero mais democráticas. A intensa movimentação – física e virtual – das sociedades no processo de globalização que se instalou (na segunda metade do século XX) configurou um declínio do poder político e cultural do Ocidente, manifestado em grandes movimentos de descolonização e no surgimento de novas nações.

No século XXI, um novo mundo emerge marcado pela aproximação contraditória entre Ocidente e Oriente na qual posições oriundas das culturas tradicionais tais como as muçulmanas e as africanas convivem com as conquistas libertárias das mulheres no mundo ocidental.

No caso do Brasil, nossa formação social multicultural promoveu uma integração no nosso território. A população brasileira, com base nos dados do último censo demográfico e nas pesquisas intercensitárias, tais como o Pnad, é majoritariamente formada por mulheres, distribuídas, igualmente, em todos os níveis socioeconômicos presentes e, também, igualmente por todo o território nacional, ou seja, não existem regiões com predomínio numérico populacional do sexo masculino.

Ainda que a população do Brasil se localize majoritariamente nas áreas urbanas, também a distribuição espacial das mulheres ocorre de maneira igual. A questão que se destaca é a da concentração de populações de baixa renda nas áreas mais afastadas do centro, ocorrendo, especialmente, em ambientes não adequados ao assentamento humano.

As questões relativas à organização familiar e mesmo à fertilidade têm profunda conotação socioeconômica e, como consequência, possuem localização físico-territorial precisa.

Diante do exposto, podemos visualizar duas situações no âmbito das questões relativas à vulnerabilidade da mulher. Uma, ligada ao gênero feminino, focaliza a violência doméstica e a violência urbana. A outra, sobre a vulnerabilidade socioeconômica que diz respeito à mulher no sentido da organização da família. As mulheres são responsáveis por 58% delas. Daí a importância de sua condição educacional, sua habilidade no trabalho, os resultados materiais do seu trabalho, a habitação e os equipamentos urbanos necessários à sua sobrevivência. Daí a crise...

2. Discussões específicas:

– Para o aumento da participação feminina na política ligada à sua vulnerabilidade de gênero:
· disseminação e generalização dos elementos previstos na Lei Maria da Penha.

– Para a atuação junto às mulheres no sentido da vulnerabilidade socioeconômica:
· universalização do atendimento da demanda de educação infantil – de 0 a 6 anos;
· exigência da fiscalização da aplicação da lei federal que obriga as empresas a oferecerem creches para as funcionárias majorando as multas previstas;
· manutenção do equipamento social em áreas de vulnerabilidade social de apoio à mulher, à adolescente e à idosa;
· retirada das famílias das áreas de risco geológico;
· priorização das mulheres na questão da oferta de unidades habitacionais, por serem majoritariamente, condutoras dos lares no Brasil;
· manutenção dos equipamentos sociais de apoio integral à saúde da mulher, especialmente aqueles destinados ao planejamento familiar.

– Para fiscalização dos equipamentos e das políticas públicas e sociais, especialmente aquelas que combatem desigualdades históricas e estruturais (de classe, raça e gênero) que têm seus recursos contingenciados e destinados ao cumprimento de metas fiscais do governo. Observamos que em situação de crise mundial do sistema financeiro a tendência governamental é restringir ainda mais esses recursos.