quarta-feira, 17 de março de 2010

Pobreza feminina - A mulher, mais uma vez

Eu&Fim de Semana - Jornal Valor 4, 5 e 6 de dezembro de 2009
Por Carla Rodrigues, para o Valor, do Rio, e Robinson Borges, de São Paulo

Núcleo pobre no Brasil metropolitano se concentra nos 1,8 milhões que vivem em famílias chefiadas por mulheresUm dos passatempos favoritos de Mislene Estevão, de 25 anos, é assistir a "Viver a Vida", telenovela de Manoel Carlos exibida no horário nobre da Rede Globo. "Eu sempre vejo.
Adoro", diz. Mais do que as intrigas de amor ambientadas nas orlas do Leblon e de Búzios, o que atrai Mislene é a parte final de cada capítulo, quando cidadãos comuns relatam como superaram seus dramas pessoais. "Às vezes sonho em poder contar minha história na TV", comenta. "Gostaria de falar que, depois de depender de parentes e amigos para sustentar minha filha, ela está bem e eu, trabalhando", diz.

A história de superação de Mislene, no entanto, ainda está no campo da ficção. Mãe de Mirela, de 2 anos, ela vive um drama bem real. A filha, cujo pai morreu no início do ano, tem problemas respiratórios crônicos, o que exige hospitalização frequente e atenção constante quando está em casa, na Vila Nhocuné, bairro da extremidade leste paulistana. "Ninguém quer contratar uma pessoa que é obrigada a faltar sempre. Estou desempregada e sem renda. Vivo dos mantimentos que minha mãe, que também está sem emprego e mora longe, me manda", desabafa.

Dramas como o de Mislene engrossam as estatísticas de um grave problema social no Brasil: cada vez mais a extrema pobreza se concentra em famílias chefiadas por mulheres com menos de 35 anos, responsáveis por crianças de menos de 6.São pessoas que permanecem em condições de indigência, apesar do crescimento econômico, da melhoria e expansão do mercado de trabalho e das políticas de transferência de renda. "São questões que os programas convencionais, como o Bolsa Família, não são capazes de resolver", diz o economista André Urani, sócio-fundador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets).

Urani pôs uma lupa sobre dados das dez principais regiões metropolitanas do Brasil e constatou que a pobreza urbana é feminina.

Em 1993 havia 6,3 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza nessas regiões - 1,6 milhões delas viviam em famílias chefiadas por mulheres.

Passados 15 anos, 3,5 milhões viviam em condições de extrema pobreza nessas mesmas áreas - 1,8 milhões em famílias chefiadas por mulheres. Ou seja, embora o total de pessoas com renda familiar per capita até R$ 104,00 tenha sido reduzido, essa diminuição não se verifica em famílias chefiadas por mulheres. Nesse período, apesar de o porcentual de pessoas que vivem na indigência ter caído 44% no Brasil metropolitano - Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio, Salvador, Distrito Federal, Recife, Fortaleza e Belém -, a queda não se refletiu nas condições de vida de quem vive em famílias chefiadas por mulheres.

O fenômeno registrado nas regiões metropolitanas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2008, se repete no Brasil como um todo, ainda que com menos intensidade.

Em 1993, havia 32,4 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza no país, das quais 5,5 milhões viviam em domicílios chefiados por mulheres.Passados 15 anos, havia 15,8 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza, das quais 5,2 milhões viviam em famílias com mulheres no comando.

Apenas 1,7% da redução da indigência no Brasil, portanto, se deu em famílias chefiadas por mulher. "Não somos capazes de enfrentar a extrema pobreza nessas famílias", afirma Urani.

Um dos problemas centrais para que a pobreza adquira o contorno feminino é que as mulheres chefes de família raramente são beneficiadas pelas melhorias no mercado de trabalho, uma consequência da combinação de fatores como falta de perspectiva de futuro, ausência de responsabilidade paterna para com os filhos, baixa escolaridade e falta de equipamentos públicos."Há necessidade, por exemplo, de a creche ser universal e os serviços médicos serem acessíveis", diz Maria Salet Novellino, professora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas e autora da pesquisa "Os Estudos sobre Feminilização da Pobreza e Políticas Públicas para Mulheres".

"O trabalho da mulher está associado à família, e o Estado tem de apoiá-la para que ela deixe a criança num lugar público decente. A mulher falta ao trabalho, basicamente, porque o filho ficou doente.

"Historicamente, famílias monoparentais - com apenas um adulto responsável -, em geral chefiadas por mulheres, são mais pobres por contar apenas com uma renda que, sendo de trabalho feminino, já é menor do que do trabalho masculino, avalia a economista Lena Lavinas, que realizou uma pesquisa sobre a ausência do público feminino entre os beneficiários do Bolsa Família.

Ela identificou que mais da metade das pessoas que não recebem o benefício vivem em famílias chefiadas por mulheres, e 60% das pessoas que não recebem, mesmo sendo elegíveis, são mulheres chefes de família. Os dados foram coletados com 121 mil mulheres do Recife.

Mislene é elegível. Já havia solicitado os benefícios do Bolsa Família fazia seis anos, quando deu à luz Mailon Emanoel Esteves, que morreu ainda bebê. Não obteve o direito. Voltou a buscar informações quando Mirela nasceu. Foi à Regional da Penha, em São Paulo, onde a orientaram a esperar um profissional responsável pelo cadastramento do programa em sua casa. "Até hoje ele não veio. O que eu faço?", pergunta.

Lúcia Modesto, secretária nacional de Renda de Cidadania, área do Ministério do Desenvolvimento Social que coordena o Programa Bolsa Família, diz que trabalha com um novo objetivo para os dois próximos anos: alcançar 2 milhões de famílias, a maior parte nas áreas urbanas. Para isso, investe numa nova forma de fazer o cadastro, treinando profissionais que possam ir às ruas localizar e identificar possíveis beneficiários.

Para cadastrar 120 mil novas famílias, que serão mapeadas nas áreas mais precárias da cidade, a Prefeitura de São Paulo vai receber R$ 4 milhões. O mesmo esforço será feito no Rio e em todas as principais capitais do país, e a meta é identificar famílias que precisam de outros apoios além da transferência de renda.

A pobreza feminina, de fato, tem outros dilemas. A vizinha de Mislene, Rosely Lazzarini, de 32 anos, chegou a ter direito ao Bolsa Família, mas perdeu. Mãe de cinco filhos - Leonardo, 10, Lilian, 8, Luana, 6, Luiz Felipe, 4, e Leandro, 2 -, ela deixou de receber o benefício porque o filho mais velho não apresentou a frequência escolar exigida por duas vezes. "Sou separada e meu ex-marido não paga pensão. O Leonardo foi morar com ele e eu não tinha como vigiá-lo na escola", justifica. "Os que moram comigo raramente faltam.

"Desempregada, Rosely diz que não tem condições de trabalhar por causa dos problemas de saúde da filha Lilian, que há um ano não se locomove e requer cuidado em tempo integral. "Ela tem problema nos ossos e está muito deprimida, por isso não tem vontade de estudar", conta.

Durante algum tempo Rosely vendeu batatas fritas na porta de sua casa, mas, para valer a pena, a matéria-prima tinha de ser adquirida a mais de 25 quilômetros de distância. O negócio ficou inviável. "Não tenho como abandonar tudo. Como batata pesa, e eu ia de ônibus ao parque D. Pedro [zona central de São Paulo] para comprar mais em conta, não dava para pegar mais do que um saco de 50 quilos por vez. Eram muitas viagens."Adultos como Mislene e Rosely têm dificuldade de mobilidade porque, ao ser os únicos responsáveis por crianças tão novas, sem ter com quem deixar os filhos, acaba sendo impraticável até sair de casa, o que impede o atendimento pela rede social. "Falta um conjunto de políticas na rede de assistência social que resolva uma série de outros déficits, além da renda, que aparecem nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres", observa Lena Lavinas, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Quanto mais a política focaliza em públicos específicos, menos alcança quem precisa. Por isso é preciso pensar em políticas universais", defende.

Ao impor mais exigências para o recebimento do benefício, diz Lena, menos o Estado garante benefício às pessoas que precisam dele. "Qualquer programa de inclusão da mulher no mercado deve ser bem equacionado. Não pode ser apenas um programa de renda. As regras do mercado não servem para mulheres com essas características", afirma Maria Salet Novellino.

A carioca Débora Priscila Quintino é outro exemplo de chefe de família sem renda e sem estrutura. Aos 22 anos, é mãe de Mariana, 4, e Caio, 2, dos quais cuida sozinha. Com apenas dois documentos - a carteira de trabalho e a de identidade -, não consegue entrar para o grupo dos beneficiados pelo programa Bolsa Família. Falta tirar o CPF, obstáculo que há quatro anos, desde que nasceu sua filha, ela não consegue transpor. Isolada no alto de uma casa numa favela do Rio, sozinha com os filhos, tem dificuldades em se deslocar para providenciar o documento, exigência para se cadastrar no programa social, que só chegou ao Rio no ano passado. É das pequenas contribuições mensais que ela sobrevive, enquanto espera os filhos crescerem.

"O sentimento de exclusão da pessoa excluída socialmente reforça a condição de exclusão. Ela se prende nessa cadeia de privação e acaba não conseguindo superar obstáculos como esse para receber os benefícios", analisa Maria Salet. "O grau de vulnerabilidade dessa parcela da população é altíssimo.

"A partir do próximo ano, a filha mais velha de Débora Priscila já poderá ir para a escola municipal. Mas, para Caio, ela ainda não conseguiu vaga na única creche municipal do complexo. E, como aponta Lena Lavinas, não há rede de vizinhos disponível para ajudar. O que existe na favela são creches particulares e um lucrativo negócio de mulheres que "tomam conta de criança" no rastro da deficiência de oferta de vagas: ao todo, a rede municipal oferece 250 creches em que estão matriculadas 29 mil crianças numa cidade onde vivem 6,1 milhões de pessoas.

Mesmo que o mercado de trabalho esteja aquecido pelos investimentos públicos que prometem desembarcar na cidade nos próximos anos, Débora Priscila sabe que não será fácil trabalhar: quando Mariana nasceu, ela largou a escola, onde cursava o primeiro ano do ensino médio. Ao ter tempo disponível, pensa em fazer um curso gratuito de manicure, mas ainda não sabe como conciliar a jornada de trabalho de oito horas com o período escolar dos filhos. Como depende da renda da mãe, do pai e da avó para sobreviver, Débora Priscila só pode abrir mão de vir a ganhar a própria renda, enquanto usa seu tempo cuidando das crianças.

"O que mais ajuda na redução da pobreza é o trabalho da mulher, em qualquer configuração familiar. Por isso é tão importante liberar o tempo da mulher para que ela possa contribuir com aumento de renda", diz Lena. Suas pesquisas também identificaram que 80% das famílias chefiadas por mulheres frequentam igrejas evangélicas, e o único lazer dos jovens são os cybercafés, onde se dá 60% do acesso à internet no país. "Não existem lugares onde se constrói identidade social positiva", afirma.

A história de Débora Priscila não só confirma os dados da Pnad, mas mostra como os argumentos de Urani, Lena e Maria Salet se dão, na prática: mesmo tendo direito ao Bolsa Família, ela está entre as mulheres chefes de família que nem sequer conseguem alcançar o benefício. "É preciso criar um imaginário melhor do que possa ser o futuro para essas mulheres", observa Urani, enquanto faz mais contas. Em 1993, nas dez regiões metropolitanas, do total de famílias vivendo em extrema pobreza, 25,1% eram chefiadas por mulheres. Quinze anos depois, do total de famílias vivendo em extrema pobreza, 51,1% são chefiadas por mulheres como Mislene Estevão, Rosely Lazzarini e Débora Priscila Quintino.

Risco e oportunidade para as mulheres diante dos desafios do século 21

08/03/2010
Katrin Bennhold
Paris (França)

Daniel Louvard não acredita na ação afirmativa. Vez ou outra, os cientistas em seu laboratório de estudo do câncer em Paris pedem que ele considere a diversidade de gênero ao contratar profissionais. Mas Louvard, diretor de pesquisa no Instituto Curie e um dos principais bioquímicos da França, continua contratando mais mulheres.

“Eu escolho os melhores candidatos, ponto final”, diz Louvard. Há 21 mulheres e 4 homens em sua equipe.

A revolução silenciosa que fez muitas mulheres do mundo em desenvolvimento alcançarem os homens no mercado de trabalho e na educação também chegou à ciência, o reduto masculino mais teimoso.

No ano passado, três mulheres receberam prêmios Nobel de ciências, um recorde. As mulheres agora representam 42% dos graduados em ciências nos 30 países da Organização pela Cooperação Econômica e Desenvolvimento; nas ciências da vida, como biologia e medicina, mais de seis entre dez graduados são mulheres.

As mulheres mais jovens também estão embarcando na ciência depois da graduação: na União Europeia, o número de mulheres na pesquisa está crescendo numa proporção quase duas vezes maior do que o de homens, dando origem ao que alguns apelidaram de “old girls network” [um sistema informal de assistência mútua entre mulheres de um determinado grupo].

Até a Barbie, a boneca icônica cuja edição de 1992 dizia a frase infame de que “matemática é difícil”, transformou-se em engenheira de computadores em sua edição de 2010, completa, com óculos e laptop cor-de-rosa.

Mas embora o progresso tenha sido imenso desde a época em que Marie Curie, vencedora do prêmio Nobel por duas vezes, foi barrada na academia de ciências da França há um século, ele tem sido mais lento em outras partes da sociedade – e bem menos uniforme.

Na ciência da computação, por exemplo, a porcentagem de graduadas mulheres nas universidades americanas chegou a um pico nos meados dos anos 80, em mais de 40%, e desde então caiu para a metade disso, diz Sue Rosser, acadêmica que escreve extensivamente sobre as mulheres na ciência. Na engenharia elétrica e mecânica, as porcentagens de matrícula continuam baixas. O número de mulheres que são professoras de ciências em tempo integral nas universidades de elite dos Estados Unidos ficou estacionado em 10% nos últimos 50 anos. Em todo o mundo, apenas um punhado de mulheres presidem uma academia de ciência nacional. As mulheres receberam apenas 16 dos 540 prêmios Nobel de ciência.

O cabo de guerra entre os números encorajadores e os detalhes lamentáveis demonstra, sob vários aspectos, a história do avanço das mulheres como um todo. As mulheres conseguem mais títulos e tiram notas melhores do que os homens nos países industrializados. Mas elas ainda ganham menos e com frequência não trabalham tempo integral. Apenas 18% dos professores catedráticos nos 27 países da União Europeia são mulheres.

E o dinheiro pesado da ciência hoje em dia está na computação e engenharia – os dois campos com menos mulheres.

No século 21, talvez mais do que nunca, o conhecimento científico e tecnológico será especialmente valorizado. Com a humanidade pronta para enfrentar desafios prementes – desde a mudança climática até doenças complexas e as consequências da revolução digital –, a falta de pessoas com a capacitação adequada deixa muitos países numa situação complicada.

Aí está tanto uma oportunidade quanto um risco para as mulheres: nos próximos anos, as pessoas que dominam as ciências mudarão o mundo – e muito provavelmente receberão os maiores salários.
“As mulheres precisam da ciência e a ciência precisa de mulheres”, diz Beatrice Dautresme, diretora executiva da Fundação L'Oreal e idealizadora do prêmio L'Oreal-Unesco para as Mulheres na Ciência, que homenageia cinco cientistas do mundo inteiro todos os anos. “Se as mulheres conseguem se dar bem na ciência, elas conseguem se dar bem em qualquer lugar.”

Muitos obstáculos que as mulheres enfrentam no cotidiano estão severamente cristalizados nas profissões tecnológicas e científicas. Equilibrar uma carreira com a família é particularmente complicado quando o tempo para conseguir uma cátedra compete com o relógio biológico, ou quando um cargo de engenharia requer longas permanências numa plataforma de petróleo no meio do oceano.

Para casais, coordenar duas carreiras é especialmente difícil quando ambos estão na ciência. E 83% das mulheres cientistas nos Estados Unidos têm parceiros cientistas, comparado a 54% dos cientistas homens.

Lutar contra preconceitos sutis e não tão sutis é muito mais difícil quando eles são transmitidos pelos educadores, desde os professores na pré-escola até Lawrence H. Summers, o ex-presidente da Universidade de Harvard. Rosser foi uma das palestrantes numa conferência em janeiro de 2005, na qual Summers disse que as diferenças “intrínsecas de aptidão” entre homens e mulheres são mais importantes do que os fatores culturais e a discriminação ao explicar porque menos mulheres têm sucesso nas ciências.

Pelo menos uma mulher na plateia saiu em protesto, lembra-se Rosser. Outras, como ela, desafiaram Summers depois de seus comentários.

A noção de que a habilidade intelectual nos homens tem uma variabilidade maior – ou seja, que os cérebros mais brilhantes e mais deficientes são encontrados nos homens – surgiu pela primeira vez em 1894 para explicar porque havia mais homens nos hospícios e menos mulheres geniais. A tese foi desacreditada por estudos empíricos, os mais recentes feitos em junho por Janet Hyde e Janet Mertz da Universidade de Wisconsin, que mostraram que em alguns países não há diferença entre homens e mulheres no mais alto nível. Nos lugares em que a diferença continua, é relacionada à desigualdade de gênero e está diminuindo, sugerindo que fatores culturais, e não intrínsecos, estão em jogo.

Mas os estereótipos correm soltos. Numa apresentação para garotas de colegial há alguns anos, Gigliola Staffilani, professora de matemática no Massachusetts Institute of Technology, foi questionada se, para uma mulher, o fato de ser inteligente “torna difícil namorar”. Os departamentos de matemática de várias universidades lamentam uma queda no número de mulheres matriculadas.
No MIT, por exemplo, a quantidade de inscrições de mulheres no programa de graduação em matemática caiu de cerca de 17% nos anos anteriores para 13% este ano, diz Staffilani. (Mas a qualidade de suas inscrições foi tão alta, diz ela, que elas serão 22% dos alunos escolhidos.)

A falta de modelos femininos a preocupa. Isso reforça uma visão de que, para as meninas, a aula de matemática é difícil.

Com frequência, o condicionamento começa cedo. Blanca Treviso, cientista da computação e diretora executiva do Softtek, o maior provedor de serviços de informação e tecnologia na América Latina, diz que a professora do jardim da infância a chamou para reclamar de sua filha, que estava brincando com uma calculadora e não com bonecas.

“A mulher disse que minha filha estava inventando histórias, dizendo que sua mãe tinha um escritório e uma assistente”, disse Treviso. “A ideia de que isso pudesse ser verdade não ocorreu a ela.”

Na Índia, as cientistas reclamam que até nos livros de ciência as mulheres são mostradas nos papeis tradicionais. E nos Estados Unidos, alguns psicólogos dizem que o aumento dos jogos de computador voltados para os meninos é uma explicação para o hiato cada vez maior nas ciências da computação desde os anos 80.

O ESPELHO É A NOVA SUBMISSÃO FEMININA

por Cláudia Jordão
Revista IstoÉ-08/03/2010

(…) uma grande parcela da população feminina foi absorvida pelo mercado de trabalho, conquistou liberdade sexual e hoje, cada vez mais, se destaca na iniciativa privada, na política e nas artes – mesmo que a total igualdade de direitos entre os sexos ainda seja um sonho distante. Mas, para a historiadora Mary Del Priore, uma das maiores especialistas em questões femininas, apesar de todas as inegáveis conquistas, as mulheres não se saíram vitoriosas. Autora de 25 livros, inclusive “História das Mulheres no Brasil”. Mary, 57 anos, diz que a revolução feminista do século XX também trouxe armadilhas.

Istoé - Neste 8 de março, há motivos para festejar?
Mary Del Priore -
Não tenho nenhuma vontade. O diagnóstico das revoluções femininas do século XX é ambíguo. Ele aponta para conquistas, mas também para armadilhas. No campo da aparência, da sexualidade, do trabalho e da família houve benefícios, mas também frustrações. A tirania da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. Ela precisa se identificar com o que vê na mídia. A revolução sexual eclipsou-se diante dos riscos da Aids. A profissionalização, se trouxe independência, também acarretou stress, fadiga e exaustão. A desestruturação familiar onerou os dependentes mais indefesos, os filhos.

Istoé - Por que é tão difícil sobreviver a essas conquistas?
Mary Del Priore -
Ocupando cada vez mais postos de trabalho, a mulher se vê na obrigação de buscar o equilíbrio entre o público e o privado. A tarefa não é fácil. O modelo que lhe foi oferecido era o masculino. Mas a executiva de saias não deu certo. São inúmeros os sacrifícios e as dificuldades da mulher quando ela concilia seus papéis familiares e profissionais. Ela é obrigada a utilizar estratégias complicadas para dar conta do que os sociólogos chamam de “dobradinha infernal”. A carga mental, o trabalho doméstico e a educação dos filhos são mais pesados para ela do que para ele. Ao investir na carreira, ela hipoteca sua vida familiar ou sacrifica seu tempo livre para o prazer. Depressão e isolamento se combinam num coquetel regado a botox.

Istoé - A mulher também gasta muita energia em cuidados com a aparência. Por que tanta neurose?
Mary Del Priore - No decorrer deste século, a brasileira se despiu. O nu, na tevê, nas revistas e nas praias incentivou o corpo a se desvelar em público. A solução foi cobri-lo de creme, colágeno e silicone. O corpo se tornou fonte inesgotável de ansiedade e frustração. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho. É uma nova forma de submissão feminina. Não em relação aos pais, irmãos, maridos ou chefes, mas à mídia. Não vemos mulheres liberadas se submeterem a regimes drásticos para caber no tamanho 38? Não as vemos se desfigurar com as sucessivas cirurgias plásticas, se negando a envelhecer com serenidade? Se as mulheres orientais ficam trancadas em haréns, as ocidentais têm outra prisão: a imagem.

Istoé - Na Inglaterra, mulheres se engajam em movimentos que condenam a ditadura do rosa em roupas e brinquedos de meninas. Por que isso não ocorre aqui?
Mary Del Priore - Sem dúvida, elas estão à frente de nós. Esse tipo de preocupação está enraizado na cultura inglesa. Mas aproveito o mote para falar mal da Barbie. Trata-se de impor um estilo de vida cor-de-rosa a uma geração de meninas. Seus saltos altos martelam a necessidade de opulência, de despesas desnecessárias, sugerindo a exclusão feminina do trabalho produtivo e a dependência financeira do homem. Falo mal da Barbie para lembrar mães, educadoras e psicólogas que somos responsáveis pela construção da subjetividade de nossas meninas.

Istoé - O que a sra. pensa das brasileiras na política?
Mary Del Priore - Elas roubam igual, gastam cartão corporativo igual, mentem igual, fingem igual. Enfim, são tão cínicas quanto nossos políticos. Mensalões, mensalinhos, dossiês de todo tipo, falcatruas de todos os tamanhos, elas estão em todos!

Istoé - Temos duas candidatas à Presidência. A sra. acredita que, se eleitas, ajudarão na melhoria das questões relativas à mulher no Brasil?
Mary Del Priore - Pois é, este ano teremos Marina Silva e Dilma Rousseff. Seria a realização do sonho das feministas dos anos 70 e 80. Porém, passados 30 anos, Brasília se transformou num imenso esgoto. Por isso, se uma delas for eleita, saberemos menos sobre “o que é ter uma mulher na Presidência” e mais sobre “como se fazem presidentes”: com aparelhamento e uso da máquina do Estado, acordos e propinas.

Istoé - Pesquisa Datafolha divulgada no dia 28 de fevereiro apontou que a ministra Dilma é mais aceita pelos homens (32%) do que pelas mulheres (24%). Qual sua avaliação?
Mary Del Priore - Estamos vivendo um ciclo virtuoso para a economia brasileira. Milhares saíram da pobreza, a classe média se robusteceu, o comércio está aquecido e o consumo de bens e serviços cresce. Sabe-se que esse processo teve início no governo FHC. Para desespero dos radicais, o governo Lula persistiu numa agenda liberal de sucesso. Os eleitores do sexo masculino não estarão votando numa mulher, numa feminista ou numa plataforma em que os valores femininos estejam em alta, mas na permanência de um programa econômico. Neste jogo, ser ou não ser Dilma dá no mesmo. No Brasil, o voto não tem razões ideológicas, mas práticas.

Istoé - Ou seja, o sexo do candidato não faz a menor diferença?
Mary Del Priore - O governo criou um ministério das mulheres (a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres) que não disse a que veio. A primeira-dama (Marisa Letícia), hábil em fazer malas e sorrir para o marido e para as câmaras, se limita a guardar as portas do escritório do presidente, sem estimular nenhum exemplo. O papel de primeira-dama é mais importante do que parece. É bom lembrar que, embora elas não tenham status particular, representam um país. Daí poderem desenvolver um papel à altura de seus projetos pessoais e sua personalidade. A francesa Danielle Mitterrand, que apoiou movimentos de esquerda em todo o mundo e nunca escondeu suas opiniões políticas, ou Hillary Clinton, pioneira em ter uma sala na Casa Branca, comportando-se como embaixatriz dos EUA, são exemplos de mulheres que foram além da “cara de paisagem”.

Istoé - Por que as políticas brasileiras não têm agenda voltada para as mulheres?
Mary Del Priore - Acho que tem a ver com a falta de educação da mulher brasileira de gerações atrás e isso se reflete até hoje. Tem um pouco a ver com o fato de o feminismo também não ter pego no Brasil.

Istoé - Por que o feminismo não pegou no Brasil?
Mary Del Priore - Apesar das conquistas na vida pública e privada, as mulheres continuam marcadas por formas arcaicas de pensar. E é em casa que elas alimentam o machismo, quando as mães protegem os filhos que agridem mulheres e não os deixam lavar a louça ou arrumar o quarto. Há mulheres, ainda, que cultivam o mito da virilidade. Gostam de se mostrar frágeis e serem chamadas de chuchuzinho ou gostosona, tudo o que seja convite a comer. Há uma desvalorização grosseira das conquistas das mulheres, por elas mesmas. Esse comportamento contribui para um grande fosso entre os sexos, mostrando que o machismo está enraizado. E que é provavelmente em casa que jovens como os alunos da Uniban aprenderam a “jogar a primeira pedra” (na aluna Geisy Arruda).

Istoé - O que nos torna tão desconectadas?
Mary Del Priore - As mulheres brasileiras estão adormecidas. Falta-lhes uma agenda que as arranque da apatia. O problema é que a vida está cada vez mais difícil. Trabalha-se muito, ganha-se pouco, peleja-se contra os cabelos brancos e as rugas, enfrentam-se problemas com filhos ou com netos. Esgrima-se contra a solidão, a depressão, as dores físicas e espirituais. A guerreira de outrora hoje vive uma luta miúda e cansativa: a da sobrevivência. Vai longe o tempo em que as mulheres desciam às ruas. Hoje, chega a doer imaginar que a maior parte de nós passa o tempo lutando contra a balança, nas academias.

Istoé - Há saída para a condição da mulher de hoje?
Mary Del Priore -
Em países onde tais questões foram discutidas, a resposta veio como proposta para o século XXI: uma nova ética para a mulher, baseada em valores absolutamente femininos. De Mary Wollstonecraft, no século XVIII, a Simone de Beau­voir, nos anos 50, o objetivo do feminismo foi provar que as mulheres são como homens e devem se beneficiar de direitos iguais. Todavia, no final deste milênio, inúmeras vozes se levantaram para denunciar o conteúdo abstrato e falso dessas ideias, que nunca levaram em conta as diferenças concretas entre os sexos. Para lutar contra a subordinação feminina, essa nova ética considera que não se devem adotar os valores masculinos para se parecer com os homens. Mas que, ao contrário, deve-se repensar e valorizar os interesses e as virtudes feminina s. Equilibrar o público e o privado, a liberdade individual, controlar o hedonismo e os desejos, contornar o vazio da pós-modernidade, evitar o cinismo e a ironia diante da vida política. Enfim, as mulheres têm uma agenda complexa. Mas, se não for cumprida, seguiremos apenas modernas. Sem, de fato, entrar na modernidade.

Istoé - O que as mulheres do século XXI devem almejar?
Mary Del Priore - O de sempre: a felicidade. Só com educação e consciência seremos capazes de nos compreender e de definir nossa identidade.

Prisioneiras das convenções

Nossa sociedade é sustentada por alicerces frágeis e arcaicos. Conduta, vestuário, modo de pensar e agir, tudo está padronizado e qualquer desvio é considerado anomalia e visto com repulsa. Muito provavelmente, nós, mulheres, somos as mais afetadas por esse determinismo social. Desde a infância, somos modeladas de acordo com conceitos já consolidados. Façamos uma análise dos presentes ganhados por uma menina no decorrer dos seus primeiros anos de vida:

1- Uma boneca: Concordo que o espírito maternal é encontrado na quase totalidade das mulheres. No entanto, nesse inocente artefato infantil está implícita a ideia de que a mulher deve (no sentido de obrigatoriedade) gerar filhos, dando continuidade à genealogia da família. tal afirmação pode ser exemplificada através da História: lembremos que, na Alemanha nazista, a mulher tinha a função única de conceber filhos homens sãos para integrarem o exército de Hitler;

2- Um fogão: Dotes culinários são realmente admiráveis. E eu invejo as mulheres que os tem. Porque, afinal, quem irá cozinhar para meu marido quando este chegar do trabalho, exausto? Presentear uma menina com algo desse tipo é materializar o ditado: ''Lugar de mulher é na cozinha''.

3- Um meigo vestidinho rosa: Porque somente nos ultrajando com tal cor demonstramos feminilidade e requinte. Uma menina não pode detestar os tons rosados, pois isso dissolveria sua imagem idealizada e subtrairia a delicadeza e fragilidade de sua personalidade.

E é assim que tem início o ''adestramento'' feminino, visando apenas entregar à sociedade mulheres polidas e respeitáveis, não é mesmo?

Pois bem, diante disso, detectei defeitos em mim. Quando criança, colecionei bonecas, fogões e vestimentas rosa, hoje, porém, só quero ter filho depois dos trinta, não sei cozinhar e bom, até gosto de rosa, mas prefiro outras tonalidades.

Algo falhou na minha educação. Talvez eu precise fazer algumas análises, Talvez sessões de regressão. Mas será que tudo não seria melhor se, ao invés de uma Barbie, eu tivesse ganhado um autorama?

JB, Domingo, 7 de fevereiro de 2010

ANARQUISMO & FEMINISMO

por Nicole Laurin-Frenette

Revista Utopia #1, primavera de 1988

As novas formas de "relações conjugais" e de "relações domésticas" sugerem um novo modelo de feminilidade: o da "mulher liberada", segundo um tipo de liberação que convém a economia capitalista e as políticas dos Estados governantes.

O princípio básico desta feminilidade é a igualdade na diferença. De um lado, as mulheres adquiriram os mesmos direitos e deveres que os homens, no que diz, respeito ao matrimônio, a família ao trabalho e à vida política social. Do outro lado, as diferenças específicas homem - mulher devem e precisam ser preservadas.

Esta especificidade refere-se a toda uma série de características físicas, intelectuais e emocionais que são consideradas típicas da natureza feminina. No entanto, tal conceituação de feminilidade não mais eficiente para descrever a mulher no mundo atual Antes, impõe e estabelece um novo estereótipo normatizado e normalizado da mulher.

Os componentes clássicos da mulher submissa eram: heterossexualidade, passividade, narcisismo e sentimentalismo. Hoje, os componentes básicos da mulher liberada camuflam os anteriores e adaptam a mulher às características deste novo ser emergente: individualismo, autonomia, força, autocontrole, eficácia e racionalidade.

Não obstante as suas contradições, este modelo e mulher justifica psicologicamente e permite socialmente ao mesmo tempo a relação conjugal, a maternidade e, na esfera das relações econômicas, a divisão do trabalho com o homem.

No contexto político, a feminilidade é objeto de negociações de todo tipo entre os movimentos feministas e as instituições que produzem, difundem e inculcam ideologias nas sociedades modernas: o Estado, os meios de comunicação e o meio cultural.

O modelo da "mulher liberada" é, basicamente, o reflexo das relações de poder entre esses dois agentes: Os movimentos feministas e os Estados governantes. Este novo modelo de feminilidade não só torna possível formas "avançadas" de opressão sobre a "mulher liberada", como também, constitui o fator - chave da reversibilidade do movimento de liberação feminina, enquanto movimento cooptado pelo Estado.

A história das mulheres é uma história de avanços e recuos. Em certos períodos históricos, as mulheres adquiriram direitos formais e informais que, em outros períodos, foram perdidos. Por outro lado, outros foram conquistados, de maneiras diversas e em contextos diversos, e assim por diante.
Toda mudança econômica, social e política relevante implica em conseqüências positivas ou negativas para as mulheres. Melhorias em sua condição são sempre fruto de uma mobilização ativa, inserida na contradição dessas mudanças.

A ideologia da feminilidade reflete a variação, no tempo, de uma essência mantida imutável: "o eterno feminino". A eficácia do feminismo, a curto e a longo prazos, depende, em grande parte, da capacidade da mulher em impedir a formação e a institucionalizacão de novas variantes do "eterno feminino", mesmo que venham apresentadas como parte integrante do processo de liberação da mulher.

O potencial de força das mulheres somente poderá ser mobilizado e usado em favor de sua verdadeira liberação, se o movimento feminista trilhar um caminho verdadeiramente revolucionário. Em outras palavras, se optar por uma mudança da ordem social e não na ordem social.
O anarquismo oferece instrumentos de organização e de luta revolucionária capazes de tornar realidade o potencial subversivo do feminismo.

Em sua origem, o feminismo representou um sério golpe nas estruturas de poder, em sua forma mais elementar e básica: o controle interpessoal, no jogo recíproco de força e consenso.
Mas a força do protesto feminista pode-se voltar contra as mulheres, se, em sua luta contra a dominação, decidirem aliar-se às instituições detentoras de poder: os partidos políticos e os aparelhos de Estado.

O Estado tornou-se (ou foi convertido em) interlocutor privilegiado do movimento feminista moderno, desde seu surgimento, e de forma cada vez mais íntima. Em seu diálogo com o Estado, o movimento das mulheres, ao formular suas reivindicações principais, terminou por assimilar-lhe a linguagem.Dessa forma, adquiriram elas direitos que o Estado pode garantir, reformas que o Estado pode realizar e recursos que o Estado pode distribuir.Ainda o Estado apresenta-se como agente garantidor de mudanças em esferas privadas que ele (Estado) não pode realizar diretamente, coma no caso de relações sexuais e afetivas homem – mulher.

Da mesma maneira que a movimento operário, especialmente em suas formas sindicais institucionalizadas, o movimento feminista é, a todo momento, levado a negociar com o Estado. Por sen turno, o movimento feminista dispõe-se a esse tipo de negociação porque lhe parece que somente esta forma mostra-se capaz de impor respeito a maridos, patrões, pais, concidadãos, colégios, dirigentes de todo tipo, intelectuais, etc.

Essa interação movimento feminista - Estado é coerente com a lógica dos sistemas sociais vigentes. De fato, a função principal do Estado moderno é expressar e neutralizar as tensões e os conflitos causados por atritos entre sujeitos sociais, especialmente as relativos a classes sociais e sexos.
Todo movimento de protesto, a qualquer nível de luta, é necessariamente remetido ao Estado. E este dispõe dos recursos e mecanismos necessários para neutralizá-lo. Pode e tem reprimido protestos com o uso da violência, mas também tem e pode determinar realizar modificações funcionais do sistema, com vistas a reduzir as tensões, sem comprometer a sua autoridade e perpetuação.
A história do movimento operário, das lutas raciais, dos movimentos estudantis oferecem uma farta ilustração de como opera o mecanismo estatal de controle nas Sociedades modernas.

Sem dúvida, as mulheres obtiveram, sobretudo por parte do Estado, o reconhecimento de certos direitos e melhorias parciais de sua condição. Na maior parte dos casos, estas vitórias das mulheres tornaram-se, também, vitórias do Estado, na medida em que significaram, em certa medida, um aumento da capacidade do Estado de controlá-las e a seu movimento.

Alguns organismos instalados a nível governamental têm toda a aparência de mecanismos permanentes de controle sobre as mulheres e seu movimento, como, por exemplo, comitês, comissões, institutos montados para estudar a mulher, formular soluções para seus problemas e, até, para montar e implantar projetos feministas.

Estes organismos e instituições multiplicam-se e proliferam em sociedades nas quais a movimento feminista tem provocado fortes impactos e possui articulações regionais e internacionais.
A despeito dessa interação, as relações mulheres - Estado estão longe de ser harmoniosas. Isso porque a Estado não resolveu - e nem pode resolver - as contradições que alimentam a revolta e a resistência das mulheres. Se, por um lado, oferece-se como um interlocutor e lhe fornece canais legais de reivindicações, por outros neutraliza seu potencial revolucionário e corrói seu potencial de libertação.

0 movimento feminista proclama, como principio, que o privado é político. Séculos de opressão demonstram que a afirmação é verdadeira sob todos as seus aspectos.

É chegado o momento, no entanto, de uma predominâcia da esfera privada sobre a pública. A primeira é vida e desejo. A segunda é ordem e imposição. Imposição que sempre vem sob a camuflagem de ajudar o desejo, desejo que é sempre posto a serviço da ordem. Porque se trata, aqui, daquele desejo que a ordem programou e daquela imposição que o desejo previu e a ela se sujeitou.
Para subverter este sistema, é necessário superar a linha imaginária que se construiu entre esfera pública e esfera privada. São duas faces da mesma moeda: a Estado – família e a família – Estado.
É necessário liberar a consciência para o fato de que, neste âmbito de solidão e luta, a moeda corrente é o controle.

Além de outras formas que devem ser liberadas, está aquela a que me referi no inicio – a feminilidade – e tal só pode ser feito se entendermos que é o poder que a produz e que são as mulheres as suas prisioneiras.

Nicole Laurin-Frenette – Professora de Sociologia na Universidade de Montreal, membro do Instituto Anarchos, Montreal Canadá in "Volontà", n. 4, 1982 – revista anarquista trimestral editada na Itália

sábado, 6 de março de 2010

Os 100 anos do 8 de Março e a reafirmação dos compromissos do PPS com as Mulheres

A democracia serve para todos ou não serve para nada
Herbert de Souza (Betinho)

Neste 8 de Março de 2010, quando mulheres do mundo inteiro comemoram os 100 anos do Dia Internacional da Mulher, o PPS vem a público reforçar seu compromisso de querer avançar em sua política para as mulheres, com a crença de que, no campo democrático, o que vale são as lutas por temas que unam mulheres e homens na continuidade histórica de responsabilidades humanas e sociais por um Brasil de oportunidades iguais para todos.

A questão que impulsiona o trabalho específico da Coordenação Nacional de Mulheres – o de empoderamento das mulheres na comunidade, nos partidos políticos e nas instituições – é a luta permanente pela efetiva implantação dos equipamentos sociais e da implementação das políticas públicas para melhorar a qualidade de vida das mulheres, especialmente aquelas que combatam desigualdades históricas e estruturais (de classe, etnia e gênero) que têm seus recursos contingenciados e destinados ao cumprimento de metas fiscais do governo. Tais recursos são sempre os primeiros a ser sacrificados demonstrando total desprezo do Estado pelas mulheres e aprofundando cada vez mais o fosso antidemocrático da desigualdade. Enquanto as políticas públicas forem operadas como concessões por parte dos poderes existentes e não como espaços de mudança, não sairemos deste patamar medíocre de conquistas e direitos em que nos encontramos.

Qualquer ação efetiva neste sentido passa além do seu combate diário por melhorar o nível de organização das mulheres pela política parlamentar representativa e de ação conjunta, visto ser a prática política tradicionalmente uma esfera de atuação masculina. Por isso, continuamos a estimular e a insistir para que nossas filiadas e militantes se disponham a concorrer a cargos eletivos e exercer um mandato que está longe de ser algo que só os homens têm talento e capacidade para fazer.

Partido Popular Socialista
Coordenação Nacional de Mulheres do PPS
Brasília, 8 de março de 2010

8 de Março: conquistas e controvérsias*

Eva Alterman Blay**

Resumo: O Dia Internacional da Mulher foi proposto por Clara Zetkin em 1910 no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas. Nos anos posteriores a 1970 este Dia passou a ser associado erroneamente a um incêndio que ocorreu em Nova Iorque em 1911. Neste artigo procuro recuperar a história do Dia 8 de Março e as distorções que tem sido feitas sobre ele e sobre a luta feminista.

Palavras chave: história do feminismo, operárias judias; operarias italianas; política, movimentos sociais.

O dia 8 de março é dedicado à comemoração do Dia Internacional da Mulher. Atualmente tornou-se uma data um tanto festiva, com flores e bombons para uns. Para outros é relembrada sua origem marcada por fortes movimentos de reivindicação política, trabalhista, greves, passeatas e muita perseguição policial. É uma data que simboliza a busca de igualdade social entre homens e mulheres, em que as diferenças biológicas sejam respeitadas, mas não sirvam de pretexto para subordinar e inferiorizar a mulher.

As mulheres faziam parte das classes perigosas

No século XIX e no início do XX, nos países que se industrializavam, o trabalho fabril era realizado por homens, mulheres e crianças, em jornadas de 12, 14 horas, em semanas de seis dias inteiros e frequentemente incluindo as manhãs de domingo. Os salários eram de fome, havia terríveis condições nos locais da produção e os proprietários tratavam as reivindicações dos trabalhadores como uma afronta, operárias e operários considerados como as “classes perigosas”.[1] Sucediam-se as manifestações de trabalhadores, por melhores salários, pela redução das jornadas e pela proibição do trabalho infantil. A cada conquista, o movimento operário iniciava outra fase de reivindicações, mas em nenhum momento, até por volta de 1960, a luta sindical teve o objetivo de que homens e mulheres recebessem salários iguais, pelas mesmas tarefas.[2] As trabalhadoras participavam das lutas gerais, mas quando se tratava da igualdade salarial, não eram consideradas. Alegava-se que as demandas das mulheres afetariam a “luta geral”, prejudicariam o salário dos homens e, afinal, as mulheres apenas “completavam” o salário masculino.

Subjacente aos grandes movimentos sindicais e políticos emergiam outros, construtores de uma nova consciência do papel da mulher como trabalhadora e cidadã. Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Clara Lemlich, Emma Goldman,[3] Simone Weil[4] e outras militantes dedicaram suas vidas ao que posteriormente se tornou o movimento feminista.

Clara Zetkin propôs o Dia Internacional da Mulher

Clara Zetkin (1857-1933), alemã, membro do Partido Comunista Alemão, deputada em 1920, militava junto ao movimento operário e se dedicava à conscientização feminina. Fundou e dirigiu a revista Igualdade, que durou 16 anos (1891-1907).

Líderes do movimento comunista como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai ou anarquistas como Emma Goldman lutavam pelos direitos das mulheres trabalhadoras, mas o direito ao voto as dividia: Emma Goldman[5] afirmava que o direito ao voto não alteraria a condição feminina se a mulher não modificasse sua própria consciência.

Ao participar do II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagem, em 1910, Clara Zetkin propôs a criação de um Dia Internacional da Mulher sem definir uma data precisa.[6] Contudo, vê-se erroneamente afirmado no Brasil e em alguns países da América Latina que Clara teria proposto o 8 de Março para lembrar operárias mortas num incêndio em Nova Iorque em 1857. Os dados a seguir demonstram que os fatos se passaram de maneira diferente.

O movimento operário nos Estados Unidos

Assim como na Europa, era intenso o movimento trabalhador nos Estados Unidos desde a segunda metade do século XIX, sobretudo nos setores da produção mineira e ferroviária e no de tecelagem e vestuário.

A emergente economia industrial norte-americana, muito instável, era marcada por crises. Nesse contexto, em 1903 formou-se, pela ação de sufragistas e de profissionais liberais, a Women’s Trade Union League[7] para organizar trabalhadoras assalariadas. Com as crises industriais de 1907 e 1909 reduziu-se o salário dos trabalhadores, e a oferta de mão de obra era imensa, dada a numerosa imigração proveniente da Europa. Grande parte dos operários e operárias era de imigrantes judeus, muitos com um passado de militância política.
No último domingo de fevereiro de 1908, mulheres socialistas dos Estados Unidos fizeram uma manifestação a que chamaram Dia da Mulher, reivindicando o direito ao voto e melhores condições de trabalho. No ano seguinte, em Manhatan, o Dia da Mulher reuniu duas mil pessoas.[8]

Problemas muito conhecidos do operariado latino-americano impeliam trabalhadores e trabalhadoras a aderir às manifestações públicas por salários e pela redução do horário de trabalho. Embora o setor industrial tivesse algumas grandes empresas, predominavam as pequenas, o que dificultava a agregação e unicidade das reivindicações. O movimento por uma organização sindical era intenso e liderado no setor de confecções e vestuário por trabalhadores judeus com experiência política sindical, especialmente da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Rússia e da Polônia (Der Alguemayner Yiddisher Arbeterbund in Russland un Poyln - BUND)[9].

Para desmobilizar o apelo das organizações e controlar a permanência dos trabalhadores/as, muitas fábricas trancavam as portas dos estabelecimentos durante o expediente, cobriam os relógios e controlavam a ida aos banheiros. Mas as difíceis condições de vida e os baixíssimos salários eram forte incentivo para a presença de operários e operárias nas manifestações em locais fechados ou na rua.

Uma das fábricas, a Triangle Shirtwaist Company (Companhia de Blusas Triângulo), para se contrapor à organização da categoria, criou um sindicato interno para seus trabalhadores/as. Em outra fábrica, algumas trabalhadoras que reclamavam contra as condições de trabalho e salário foram despedidas e pediram apoio ao United Hebrew Trade, Associação de Trabalhadores Hebreus. Então as trabalhadoras da Triangle quiseram retirar alguns recursos do sindicato interno para ajudar as companheiras, mas não o conseguiram. Fizeram piquetes na porta da Triangle, que contratou prostitutas para se misturarem às manifestantes, pensando assim dissuadi-las de seus propósitos. Ao contrário, o movimento se fortaleceu.

Uma greve geral começou a ser considerada pelo presidente da Associação dos Trabalhadores Hebreus, Bernardo Weinstein, sempre com o objetivo de melhorar as condições de trabalho da indústria de roupas. A ideia se espalhou e, em 22 de novembro de 1909, organizou-se uma grande reunião na Associação dos Tanoeiros liderada por Benjamin Feigenbaum e pelo Forward.[10] A situação era extremamente tensa e, durante a reunião, subitamente uma adolescente, baixa, magra, se levantou e pediu a palavra: “Estou cansada de ouvir oradores falarem em termos gerais. Estamos aqui para decidir se entramos em greve ou não. Proponho que seja declarada uma greve geral agora!” A plateia apoiou de pé a moção da jovem Clara Lemlich.[11]

Política e etnia

No movimento dos trabalhadores as relações étnicas tinham peso fundamental, razão pela qual, para garantir um compromisso com a greve, Feigenbaum usou um argumento de extraordinária importância religiosa para os judeus. Ele perguntou à assembleia: “Vocês se comprometerão com o velho mandamento judaico?” Uma centena de mãos se ergueram e todos gritaram: “Se eu esquecer de vós, ó Jerusalém, que eu perca minha mão direita”.[12] Era um juramento de que não furariam a greve.

Cerca de 15 mil trabalhadores do vestuário, a maioria moças, entraram em greve, provocando o fechamento de mais de 500 fábricas. Jovens operárias italianas aderiram, houve prisões, tentativas de contratar novas trabalhadoras, o que tornou o clima muito tenso. A direção da greve ficou com a Associação dos Trabalhadores Hebreus e com o Sindicato Internacional de Trabalhadores na Confecção de Roupas de Senhoras (International Ladies’ Garment Workers’ Union - ILGWU).[13]

À medida que as grandes empresas cederam algumas reivindicações, a greve foi se esvaziando e se encerrou em 15 de fevereiro de 1910 depois de 13 semanas.

O incêndio


Pouco tinha sido alterado, sobretudo nas fábricas de pequeno e médio porte, e os movimentos reivindicatórios retornaram. A reação dos proprietários repetia-se: portas fechadas durante o expediente, relógios cobertos, controle total, baixíssimos salários, longas jornadas de trabalho.

O dia 25 de março de 1911 era um sábado, e às 5 horas da tarde, quando todos trabalhavam, irrompeu um grande incêndio na Triangle Shirtwaist Company,[14] que se localizava na esquina da Rua Greene com a Washington Place. A Triangle ocupava os três últimos de um prédio de dez andares. O chão e as divisórias eram de madeira, havia grande quantidade de tecidos e retalhos, e a instalação elétrica era precária. Na hora do incêndio, algumas portas da fábrica estavam fechadas. Tudo contribuía para que o fogo se propagasse rapidamente.

A Triangle empregava 600 trabalhadores e trabalhadoras, a maioria mulheres imigrantes judias e italianas, jovens de 13 a 23 anos. Fugindo do fogo, parte das trabalhadoras conseguiu alcançar as escadas e desceu para a rua ou subiu para o telhado. Outras desceram pelo elevador. Mas a fumaça e o fogo se expandiram e trabalhadores/as pularam pelas janelas, para a morte. Outras morreram nas próprias máquinas. O Forward publicou terríveis depoimentos de testemunhas e muitas fotos.[15]

Morreram 146 pessoas, 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus.

A comoção foi imensa. No dia 5 de abril houve um grande funeral coletivo que se transformou numa demonstração trabalhadora. Apesar da chuva, cerca de 100 mil pessoas acompanharam o enterro pelas ruas do Lower East Side. No Cooper Union falou Morris Hillquit e no Metropolitan Opera House, o rabino reformista Stephen Wise.

A tragédia teve consequências para as condições de segurança no trabalho e, sobretudo, serviu para fortalecer o ILGWU.

Para autores como Sanders,[16] todo o processo, desde a greve de 1909, mais o drama do incêndio da Triangle, acabou fortalecendo o reconhecimento dos sindicatos. O ILGWU, de conotação socialista e um dos braços mais ‘radicais’ do American Federation of Labour (AFL), se tornou o maior e mais forte dos Estados Unidos naquele momento.

Atualmente no local onde se deu o incêndio foi construída a Universidade de Nova Iorque. Uma placa, lembrando o terrível episódio, foi lá colocada:
“Neste lugar, em 25 de março de 1911, 146 trabalhadores perderam suas vidas no incêndio da Companhia de Blusas Triangle. Deste martírio resultaram novos conceitos de responsabilidade social e legislação do trabalho que ajudaram a tornar as condições de trabalho as melhores do mundo (ILGWU)”.[17]

Mulheres e movimentos sociais

No século XX, as mulheres trabalhadoras continuaram a se manifestar em várias partes do mundo: Nova Iorque, Berlim, Viena (1911); São Petersburgo (1913). Causas e datas variavam. Em 1915, Alexandra Kollontai organizou uma reunião em Cristiana, perto de Oslo, contra a guerra. Nesse mesmo ano, Clara Zetkin faz uma conferência sobre a mulher. Em 8 de março 1917 (23 de fevereiro no Calendário Juliano), trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve e pediram apoio aos metalúrgicos. Para Trotski esta teria sido uma greve espontânea, não organizada,[18] e teria sido o primeiro momento da Revolução de Outubro.

Na década de 60, o 8 de Março foi sendo constantemente escolhido como o dia
comemorativo da mulher e se consagrou nas décadas seguintes. Certamente esta escolha não ocorreu em consequência do incêndio na Triangle, embora este fato tenha se somado à sucessão de enormes problemas das trabalhadoras em seus locais de trabalho, na vida sindical e nas perseguições decorrentes de justas reivindicações.

Lenin: o que importava era a política de massas e não o direito das mulheres

Mulheres e homens jovens tinham muitas outras preocupações além das questões trabalhistas e do sistema político. Nem sempre a liderança comunista entendia essas necessidades, como foi o caso de Lenin e de muitos outros líderes. Em seu Diário, Clara Zetkin relata o que ouvira do camarada e amigo Lenin, ao visitá-lo no Kremlin, em 1920.[19] Lenin lamentava o descaso pelo Dia Internacional da Mulher que ela propusera em Copenhagem, pois este teria sido um oportuno momento para se criar um movimento de ‘massa’, internacionalizar os propósitos da Revolução de 17, agitar mulheres e jovens. Para alcançar este objetivo, afirmava ele, era necessário discutir exclusivamente os problemas políticos e não perder tempo com aquelas discussões que os jovens trabalhadores traziam para os grupos políticos, como casamento e sexo.[20] Lenin estendia suas críticas ao trabalho de Rosa Luxemburgo com prostitutas: “Será que Rosa Luxemburgo não encontrava trabalhadores para discutir, era necessário buscar as prostitutas?”[21]

Esta visão de Lenin fez escola na esquerda. A experiência do ‘amor livre’ nos primeiros anos pós-Revolução trouxe enormes conflitos que levaram à restauração do sistema de família regulamentado pelo contrato civil. Temas relativos ao corpo, à sexualidade, à reprodução humana, relação afetiva entre homens e mulheres, aborto, só foram retomados 40 anos mais tarde pelo movimento feminista.

O 8 de Março no Brasil


No Brasil vê-se repetir a cada ano a associação entre o Dia Internacional da Mulher e o incêndio na Triangle quando na verdade Clara Zetkin o tenha proposto em 1910, um ano antes do incêndio. É muito provável que o sacrifício das trabalhadoras da Triangle tenha se incorporado ao imaginário coletivo da luta das mulheres. Mas o processo de instituição de um Dia Internacional da Mulher já vinha sendo elaborado pelas socialistas americanas e europeias há algum tempo e foi ratificado com a proposta de Clara Zetkin.

Nas primeiras décadas do século XX, o grande tema político foi a reivindicação do direito ao voto feminino. Berta Lutz, a grande líder sufragista brasileira, aglutinou um grupo de mulheres da burguesia para divulgar a demanda. Ousadas, espalharam de avião panfletos sobre o Rio de Janeiro, pedindo o voto feminino, no início dos anos 20! Pressionaram deputados federais e senadores e se dirigiram ao presidente Getúlio Vargas. Afinal, o direito ao voto feminino foi concedido em 1933 por ele e garantido na Constituição de 1934.[22] Mas só veio a ser posto em prática com a queda da ditadura getulista, e as mulheres brasileiras votaram pela primeira vez em 1945.

Em 1901, as operárias, que juntamente com as crianças constituíam 72,74% da mão-de-obra do setor têxtil, denunciavam que ganhavam muito menos do que os homens e faziam a mesma tarefa, trabalhavam de 12 a 14 horas na fábrica e muitas ainda trabalhavam como costureiras, em casa. Como mostra Rago, a jornada era de umas 18 horas e as operárias eram consideradas incapazes física e intelectualmente. Por medo de serem despedidas, submetiam-se também à exploração sexual.

Os jornais operários, especialmente os anarquistas, reproduziam suas reclamações contra a falta de higiene nas fábricas, o assédio sexual, as péssimas condições de trabalho, a falta de pagamento de horas extras, um sem número de abusos. Para os militantes operários, a fábrica era um local onde as mulheres facilmente se prostituíam, daí reivindicarem a volta das mulheres para casa. Patrões, chefes e empregados partilhavam dos mesmos valores: olhavam as trabalhadoras como prostitutas.[23]

Entre as militantes das classes mais altas, a desqualificação do operariado feminino não era muito diferente: partilhavam a imagem generalizada de que operárias eram mulheres ignorantes e incapazes de produzir alguma forma de manifestação cultural. A distância entre as duas camadas sociais impedia que as militantes burguesas conhecessem a produção cultural de anarquistas como Isabel Cerruti e Matilde Magrassi, ou o desempenho de Maria Valverde em teatros populares como o de Arthur Azevedo[24].

Como as anarquistas americanas e europeias, as brasileiras (imigrantes ou não) defendiam a luta de classes mas também o divórcio e o amor livre, como escrevia A Voz do Trabalhador de 1° de fevereiro de 1915: “Num mundo em que mulheres e homens desfrutassem de condições de igualdade... Vivem juntos porque se querem, se estimam no mais puro, belo e desinteressado sentimento de amor”.[25]

A distinção entre anarquistas e comunistas foi fatal para uma eventual aliança: enquanto as comunistas lutavam pela implantação da “ditadura do proletariado”, as anarquistas acreditavam que o sistema partidário reproduziria as relações de poder, social e sexualmente hierarquizadas.
No PC a diferenciação de gênero continuava marcante: as mulheres se encarregavam das tarefas ‘femininas’ na vida quotidiana do Partido. Extremamente ativas, desenvolveram ações externas de organização sem ocupar qualquer cargo importante na hierarquia partidária. Atuavam, por exemplo, junto a crianças das favelas ou dos cortiços, organizavam colônias de férias, supondo que poderiam ensinar às crianças novos valores.

Zuleika Alembert, a primeira mulher a fazer parte da alta hierarquia do PC, eleita deputada estadual por São Paulo em 1945, foi expulsa do Partido quando fez críticas feministas denunciando a sujeição da mulher em seu próprio partido.

O feminismo dos anos 60 e 70 veio abalar a hierarquia de gênero dentro da esquerda. A luta das mulheres contra a ditadura de 1964 uniu, provisoriamente, as feministas e as que se autodenominavam membros do ‘movimento de mulheres’. A uni-las, contra os militares, havia uma data: o 8 de Março. A comemoração ocorria através da luta pelo retorno da democracia, de denúncias sobre prisões arbitrárias, desaparecimentos políticos.

A consagração do direito de manifestação pública veio com o apoio internacional – a ONU instituiu, em 1975, o 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher.
Entrou-se numa nova etapa do feminismo. Mas velhos preconceitos permaneceram nas entrelinhas. Um deles talvez seja a confusa história propalada do 8 de Março, em que um anti-americanismo apagava a luta de tantas mulheres, obscurecendo até mesmo suas origens étnicas.

Referências bibliográficas

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CHOMBART DE LAUWE, M.J; Chombart de Lauwe , Paul Henri et alii. La femme dans la sociétè: son image dans différents milieux sociaux. Paris: CNRS, 1963.
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MINCZELES, Henri. Histoire générale du BUND, un mouvement révolutionnaire juif. Paris: Austral, 1995.
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ZETKIN, Clara . My Recollections of Lenin ( An Interview on Woman Question) Apêndice pp. 87-122 in V.I. Lenin. The Emancipation of Women . International Publishers. New York. 1972 ( a primeira edição é de 1934). SBN 7178-0290-6
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[1] Chevalier, 1984.
[2] Chombart dee Lauwe., M.J ;m Chombart de Lauwe, Paul Henri et alii, 1963.
[3] Lobo, 1983.
[4] Bosi, 1982.
[5] Lobo, 1983.
[6] Em alguns países o Dia foi comemorado em 28 de fevereiro ou em 15 de março.
[7] Sobre a Women’s Trade Union League, ver também Shepherd, 1993, p. 247-258.
[8] Isis Creation for the Australian Women’s Inta network. A History of International Women’s Day Origins. http://www.isis.aust.com/iwd.
[9] Minczeles, 1995.
[10] Jornal de esquerda escrito parcialmente em ídiche. Forward tem sido traduzido por Avante.
[11] Sanders, 1987, p. 400.
[12] Sanders, 1987, p. 396-400.
[13] Esta greve foi encerrada em 15 de fevereiro de 1910, pois os trabalhadores das grandes empresas conquistaram melhorias.
[14] Sanders, 1987, p. 394.
[15] Howe e Libo, 1979, p. 186.
[16] Sanders, 1987.
[17] Sanders, 1987, p. 393.
[18] Para outros, esta manifestação contra a fome, o czarismo e a guerra teria sido orientada pelo comitê bolchevista de Petrogrado.
[19] Devo o acesso ao texto de Clara Zetkin à sempre companheira Judith Patarra.
[20] Zetkin, 1934 p. 97.
[21] Zetkin, 1934 p.99.
[22] Alves, 1980.
[23] Rago, 1987.
[24] Agradeço a Miriam Moreira Leite a contribuição para a inclusão destes dados e pela revisão do texto.
[25] Rago, 1987, p. 104.

*Artigo publicado na revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2/2001: 601-608.
** Dados biográficos da Autora - Eva Alterman Blay
Profa. Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora Científica do NEMGE (Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero) da USP. Autora de “Trabalho Domesticado-a mulher na indústria paulista” (Ática, 1978;) As Prefeitas, Avenir (s/d), e outros livros e artigos sobre gênero, habitação operária, participação política. Foi Senadora da República entre 1992/1994.