segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A questão de gênero e as políticas públicas

– Desenvolvimento de ações locais ainda é processo em construção

Sob o impacto da democratização e da luta de movimentos feministas e de mulheres no Brasil, desde 1980 tem ocorrido um processo gradual de incorporação da problemática das desigualdades de gênero pela agenda governamental. A partir da Constituição de 1988, com a crescente importância dos governos municipais, o problema passou fazer parte também da agenda dos governos locais.

O desenvolvimento de políticas de gênero – ou que incorporem um olhar de gênero – pelos governos municipais é um processo em construção. Essa incorporação tende a refletir a "agenda" e as prioridades definidas por movimentos de mulheres e entidades feministas, assim como prioridades estabelecidas por outros movimentos nos quais a presença de mulheres é decisiva, como, por exemplo, os movimentos de moradia. O eixo de uma ação governamental orientada pela perspectiva de gênero consiste na redução das desigualdades entre homens e mulheres (e entre meninos e meninas).

Falar em reduzir desigualdades de gênero não significa negar a diversidade. Trata-se de reconhecer a diversidade – entre homens e mulheres –, mas atribuindo a ambos o mesmo valor; aceitando que suas necessidades específicas – e nem sempre iguais – devem ser contempladas pela sociedade e pelo Estado. Se não se pára para pensar nesses diferentes modos de estar na sociedade, pode-se propor e implementar ações que aparentemente atendem a todos, mas na verdade não reconhecem necessidades diferenciadas.

Podemos apreender de forma clara o risco de negligenciar a diferença ao considerar, por exemplo, o projeto de um edifício público em tese concebido para todos, mas sem rampas de acesso ou elevadores. Os portadores de necessidades especiais e os idosos com problemas cardíacos não terão acesso a tal edifício que, desta forma, não será para todos.

Em termos de gênero, no caso das mulheres o processo é similar, embora menos evidente, pois não estamos habituados em nossa sociedade a olhar as ações – governamentais e não-governamentais, incluindo nossas ações cotidianas – a partir desse olhar. Podemos refletir sobre alguns casos. Por exemplo, uma política de acesso à moradia que conceda o título de propriedade ao chefe da família, entendido exclusivamente como o pai, o cabeça do casal. E as mulheres, casadas ou não? E as mulheres, chefes de família ou não? Não estariam excluídas do acesso a esta política?

E uma política de segurança pública tradicional – ela tem espaço para atender vítimas de violência doméstica? Tal política conta com pessoal preparado e inclui estratégias de ajuda efetiva às vítimas, num caso em que o agressor é distinto do agressor estranho, por estar dentro de casa? Sabemos que não. As mulheres estão, assim, desprotegidas, tanto na esfera pública como na privada.

Diversos outros exemplos poderiam ser citados, mas o que interessa aqui é destacar que é preciso um novo olhar para poder perceber se os diferentes – homens e mulheres – estão sendo atendidos, se estão tendo oportunidades e espaços iguais, inclusive para se manifestar. É preciso um novo olhar para poder perceber que a desigualdade entre homens e mulheres em nossa sociedade se reflete em pequenas (e grandes) discriminações, em pequenas (e grandes) dificuldades enfrentadas pelas mulheres em seu cotidiano, em dificuldades de inserção no mercado de trabalho e de acesso a serviços, em um cotidiano penoso na esfera doméstica.

– Governos não atendem a todos, se não reconhecem diferenças das necessidades de homens e mulheres –

As ações governamentais, as políticas públicas e os programas desenvolvidos por governos podem exercer um papel importante diante desse quadro de desigualdades. Podem reforçá-lo – o que ocorre, em geral, pelo fato de os governos e as agências estatais não estarem atentos às desigualdades de gênero. E, mais que isso, em decorrência sobretudo de a própria sociedade não estar atenta a essas desigualdades.

Mas as ações governamentais podem também contribuir para a sua redução. Em primeiro lugar, reconhecendo que tal desigualdade existe e que deve e pode ser combatida. A partir daí, integrando essa causa à agenda de governo.

A base para uma ação que vise reduzir as desigualdades de gênero é conseguir identificar como e onde estas se manifestam e quais são seus impactos, para que se possam planejar estratégias de ação. Esta identificação pode contar com o conhecimento acumulado por todos e todas envolvidos nesta luta, em todo o país; a participação da sociedade civil local, sobretudo das mulheres; as equipes envolvidas diretamente com a implementação das políticas, desde que sensibilizadas para a problemática de gênero.

A identificação concreta das formas como se manifestam essas desigualdades permite estabelecer prioridades de ação, como as apontadas pela agenda de gênero: combate à violência contra a mulher; políticas de atenção integral à saúde da mulher; programas de geração de emprego, renda e capacitação; acesso a crédito; acesso à propriedade; combate à discriminação no trabalho; entre outras.

Outro ponto a ser destacado é a prioridade à erradicação do trabalho infantil de meninas. Esse problema é um desafio em todo o país e atinge meninos e meninas. Complementar a ele é o de crianças em situação de rua, entre as quais há um contingente expressivo de meninas.

É importante destacar também a questão de políticas públicas que incorporem as mulheres negras. Há carência absoluta de políticas e programas para os negros em geral e para as mulheres negras em particular, em todo o país. No banco de dados com mais de 7 mil iniciativas de políticas e programas inovadores de governos subnacionais do Programa Gestão Pública e Cidadania da FGV-EAESP, não há mais do que dez programas para a comunidade negra. Este é um enorme desafio: reconhecer essa diferença e construir políticas voltadas à redução da desigualdade que afeta esse segmento.

Existem três pontos fundamentais para a consolidação de políticas públicas com enfoque de gênero. Em primeiro lugar, o comprometimento de todas as secretarias, seu envolvimento com a tarefa da redução da desigualdade de gênero. Em segundo, a abertura permanente para necessidades locais, para demandas nem sempre vindas de grupos organizados. E por último, a necessidade de se instituírem canais permanentes que garantam a sensibilização e a discussão - entre órgãos municipais e entre estes e a sociedade civil.

*Marta Ferreira Santos Farah - socióloga, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, coordenadora do curso de graduação em Administração e vice-coordenadora do Programa Gestão Pública e Cidadania da FGV

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