domingo, 12 de julho de 2009

MULHER E PODER

Céli Regina Jardim Pinto
Professora do Departamento de História UFRGS
Doutora em Ciência Política

Meu objetivo nesta comunicação é fazer uma reflexão sobre o tema mulher e poder a partir de duas perspectivas que estão estreitamente relacionadas: a primeira perspectiva diz respeito a questões mais concretas do binômio mulher- poder e concerne a posição das mulheres no espaço público, mais especificamente na arena da luta política. A segunda perspectiva refere-se ao binômio de uma forma mais teórica, buscando embasamento para propor questões para reflexão sobre este binômio que parece mais um enigma. Todo o argumento que tratarei de desenvolver tem como foco central de preocupação a questão brasileira.

Uma das questões mais centrais quando o tema é a presença da mulher na arena pública de decisão em termos gerais ou na política é a seguinte: que mulheres queremos nos cenários políticos? Todas as mulheres independente de classe, posição política, comprometimento com as questões de reconhecimento das minorias sem poder? Ou estamos lutando para elegermos nos parlamentos e nas posições chaves de poder, mulheres feministas que defendam as grande causas do movimento?

A militância feminista, assim com a militância de outros movimentos sociais, como negros e gays, tendem a responder afirmativamente a segunda parte da questão e serem muito evasivos em relação a primeira, com o argumento que mulheres que não se reconhecem como sujeitos políticos não lutam pelas causas das mulheres em geral.

Mesmo que a assertiva seja verdadeira, gostaria de partir de uma outra perspectiva e afirmar que a simples presença de mulheres como vitoriosas, sejam elas feministas ou não, em um quadro maduro de concorrência eleitoral, é muito revelador da posição ocupada pela mulher no espaço público da sociedade. Em países onde o movimento feminista teve uma história longa com muita visibilidade e com vitórias expressivas no campo dos direitos das mulheres , há um número importante de mulheres na disputa eleitoral e nos cargos legislativos, executivos e judiciários.

Todavia, esta presença não garante que as mulheres tenham se eleito com plataformas feministas ou sejam feministas. Mesmo assim é muito mais provável que as demandas por direitos das mulheres sejam defendidas por mulheres do que por homens, independente da posição política, ideológica e mesmo de inserção no movimento feminista Se a metade dos 513 deputados da Câmara Federal brasileira fosse de mulheres certamente o tema do aborto, teria uma presença muito maior e um debate de qualidade muito diferenciada nos debates parlamentares, até porque este cenário tão hipotético revelaria uma campo de forças muito distinto do que existe hoje entre homens e mulheres.

Iris Young é afirmativa neste ponto, discutindo seu conceito de perspectiva que eu desenvolverei mais tarde nesta apresentação ela afirma “ Não é muito comum para pessoas sem atributos descritivos representarem uma perspectiva(... Um homem asiático americano que cresceu em um bairro predominantemente afro americano, que tem muitos amigos afro americanos e que trabalha em um serviço comunitário com afro americanos, por exemplo, pode ser capaz de representar uma perspectiva afro americana em muitas discussões, mas a maioria dos homens asiáticos americanos não poderia, porque eles são muito diferentemente posicionados” (Young,2000;148)*.

A cientista política Anne Phillip, por sua parte, tem uma reflexão muito sofisticada sobre relação de presença com a idéia no campo político. É sua tese que a idéia pode sobreviver sem a presença, isto é, pode haver defensores do feminismo no parlamento sem mulheres, mas que tal situação é rara e limitada. São suas as palavras: “ quando a política das idéias é tomada isoladamente do que eu chamarei política de presença, ela não da conta adequadamente da experiência daqueles grupos sociais que por virtude de sua raça, etnicidade, religião, gênero tem sido excluídos do processo democrático. Inclusão política tem sido cada vez mais – eu acredito acertadamente – vista em termos que pode ser concretizada somente
por política de presença.” ..” (Phillips, 1996;146)

* todas as traduções foram feitas por mim para uso exclusivo neste texto

Retomando a questão inicial podemos identificar quatro cenários da mulher na arena política: 1. sem idéia nem presença; 2.com idéia sem presença; 3.sem idéia com presença; 4. com idéia e com presença. Para meus propósitos vou permanecer com os dois últimos cenários e afirmar que eles são igualmente importantes para a questão da mulher, são complementares e permeáveis um ao outro.

Isto posto, gostaria de fazer uma inflexão na minha fala para trazer elementos para uma discussão sobre a ausência da mulher na arena política brasileira (que acompanha a mesma lógica de ausência/presença de outros países). Neste momento gostaria de focar uma questão mais ampla, que reputo básica para o entendimento da problemática que estou aqui tratando: as relações de poder em si. Permitam-me afirmar como ponto de partida que o entendimento analítico de como estas relações funcionam, possibilita um aporte mais realista à questão específica em pauta.

Gostaria de colocar a questão da relação mulher e poder a partir de três perspectiva: a primeira diz respeito a posição relativa da mulher na estrutura de dominação, e para tal assumirei a existência de um sujeito unitário mulher em contraposição a um sujeito unitário homem. Esta é uma simplificação grosseira que eu plenamente reconheço, mas que mantenho porque ela me permite discutir a questão do poder na sociedade moderna e chegar a alguns pontos, que reputo fundamentais para o que estou discutindo aqui.

A segunda perspectiva diz respeito a pretensão de poder da mulher na sociedade moderna. A questão que me norteia neste momento é a seguinte: a razão pela qual a mulher tem presença tão pequena nos postos poder político (o momento mais strito senso do poder) estaria na resposta a primeira questão?

E a terceira perspectiva diz respeito a uma questão central de representação: as mulheres empoderadas têm construído uma identificação com as mulheres em geral capaz de as reconstrui-las como sujeitos de poder. Em outros termos, capaz de empodera-las. Qual é a aproximação entre as mulheres empoderadas e as mulheres que se pretende empoderar?

Em outra oportunidade discutindo o binômio inclusão-exclusão me vali de um texto de Foucault para estudar formas de exercício de poder. (Pinto,1999) Trata-se da aula no College de France de 15 de janeiro de 1975. Nela Foucault exemplifica, historicamente, dois modos de exercício de poder: o que se constituiu frente a tentativa de controlar a lepra e o que se constituiu frente à peste bubônica , ambos na Europa do fim do medievo. Foucault no primeiro caso afirma que se excluiu, no segundo se incluiu. Primeiro descreve a ação em relação a lepra na Idade Média: “ A exclusão da lepra, era uma prática social que comportava uma segregação rigorosa, um colocar a distância, uma regra de não contato entre um indivíduo ( ou grupo de indivíduos ) e um outro. A rejeição destes indivíduos em um mundo exterior, confuso, para lá dos muros da cidade, para lá dos limites da comunidade.” (Foucault, 1999: 41)

Em contraposição descreve a ação contra a peste: “A cidade em estado de peste – (..) foi dividida em distritos, os distritos foram divididos em quarteirões, e dentro destes quarteirões foram isoladas as ruas e havia em cada rua os vigilantes , em cada quarteirão os inspetores, em cada distrito e na própria cidade havia um governador eleito para este fim.. (......) “

Em relação a este segundo tipo de exercício de poder Foucault afirma “ Não se trata mais de uma exclusão, se trata de uma quarentena, Não se trata mais de caçar, se trata, ao contrário de estabelecer, de fixar, de presenças esquadrinhadas. Não é rejeição, mas inclusão.” (Foucault, 1999: 43)

O texto de Foucault é uma forte metáfora para quase todas as formas de poder presentes no mundo contemporâneo. Se tomarmos a posição da mulher no mundo público (deixarei de fora a questão das relações no mundo privado , no que pese muito importante, mas não fundamental para o meu argumento neste momento) as metáforas são muito valiosas. Dos gineceus coloniais até as exclusões jurídicas na primeira constituição republicana a metáfora da lepra parece dar conta da teia de relações de poder onde a mulher brasileira se encontrava. Ao ser confinada à casa, paradoxalmente, a mulher era expulsa dos muros da cidade, entre os quais o mundo público se conformava. Ela, simplesmente, não existia. Quando a constituição de 1891 estabelece que todos os cidadãos brasileiros alfabetizados e maiores de 18 anos eram eleitores, ficou claro para o conjunto da população de homens e mulheres e para o regramento jurídico do país, que as mulheres não poderiam votar. O direito ao voto, como sabemos, só foi obtido em 1932. Não se citou a mulher em 1891, não lhe prescreveu limites, simplesmente se excluiu, não se reconheceu sua existência.

A partir de 1932, e vou usar esta data, como poderia usar outras, mas tenho bastante convicção que esta é uma data muito significativa, a mulher começa a aparecer na ordem da dominação, no mundo público como uma persona, que deveria ser controlada, a ela foram atribuídos lugares permitidos e lugares proibidos. Estaria incluída em alguns discursos e excluía de outros. Porque isto acontece? Parece-me que por força de dois vetores: a dinâmica da construção recente do estado nacional no Brasil e do próprio capitalismo e pela força contrária construída pela luta das mulheres em geral e do feminismo em particular. Dos lugares proibidos certamente o espaço da política é o mais claramente proibido e por vias de conseqüência o mais difícil de romper. Por que era o mais claramente proibido? Por que o é ainda hoje?

Parece-me que há dois motivos um decorrente do outro, que possuem uma perenidade surpreendente e que até hoje devem ser considerados quando se pensa na imensa dificuldade da entrada da mulher na política no Brasil. O primeiro é o imenso poder pessoal que adquirem os membros de parlamentos e governos. Este poder pessoal não tem correspondência necessária ao poder político, mas é fundamental na reprodução de ordens hierárquicas presentes na sociedade brasileira: de classe; de gênero; de etnia entre outras. As razões deste poder pessoal são complexas e tem como base a própria hierarquia da sociedade brasileira que historicamente legitimou a desigualdade tanto dos mais pobres como dos mais ricos, tanto dos despoderados como dos poderosos. No Brasil não existem instâncias que tornem todos os seus cidadãos e cidadãs iguais em direitos e deveres de fato. Há um fosso, entre as elites que se sentem desiguais no sentido de se arvorarem direitos especiais e as camadas populares que se sentem desiguais, no sentido de não perceberem seus direitos e os vivenciarem, muitas vezes, como favores. Estas elites inicialmente econômicas e sociais, depois acrescidas das elites sindicais, acadêmicas entre outras, usufruem e reproduzem estas “desigualdades para cima” e protegem os limites dos espaços de exercício de poder. A entrada nestes espaços de personas, de grupos que forjaram lugar no espaço público justamente desafiando esta ordem hierárquica é freada de todas as maneiras. Este espaço de poder tem mostrado uma grande capacidade de conversão de novos membros a sua dinâmica de reprodução de desigualdade, na apropriação, por exemplo, dos bens públicos. Para ter este êxito, deve limitar o acesso aos novos membros.

Ao próprio feminismo foi dado um lugar neste arranjo de dominação, As mulheres feministas podem falar algumas coisas e não outras. As mulheres não feministas terão poderes outro, porque não feminista. Quando uma mulher fala sua fala tem uma marca: é a fala de uma mulher; quando uma mulher feminista fala tem duas marcas, de mulher e de feminista.

A recepção destas falas por homens e mulheres tende a ter a mesma característica, é a recepção de uma fala marcada, portanto, particular, em oposição à fala masculina/universal. Se for a fala de uma mulher feminista e o particular do particular.

Mesmo quando as mulheres ultrapassam barreiras pessoais e partidárias e tornam-se candidatas, pesquisas que tenho realizado mostram que estas mulheres não enfatizam nem o fato óbvio de serem mulheres e, portanto, de serem uma novidade, nem tão pouco articulam em suas plataformas com destaque temas presentes nas lutas feministas. Está é uma questão que reputo quase tão fundamental como a ausência per se.

Em 2008 a cidade de Porto Alegre viveu uma experiência eleitoral única na sua história, teve três candidatas à prefeita, todas deputadas federais de grande destaque e tendo pelo menos duas dela,s reais chances de serem eleitas. Em pesquisa realizada a partir dos programas eleitorais gratuito veiculados na TV e nos programas editados nas páginas da internet verificou-se uma quase total ausência de referência à condição de mulher das candidatas e a mulher foi a grande ausente no discurso da campanha veiculada na televisão. As razões desta ausência devem ser buscadas tanto na postura das próprias candidatas como na recepção do discurso pelos eleitores e eleitoras. Tendo em vista que as questões referentes aos direitos das mulheres aparecem nos programas escritos de algumas destas candidatas, até de forma bem detalhada, a ausência de qualquer referência a eles no programa eleitoral de TV parece indicar, que as candidaturas não assumem a existência de um número significativo de eleitoras-eleitores que se sensibilizariam com este tipo de problemática.

Judith Butler discutindo o tema da representação dá uma contribuição muito importante na discussão da presença da mulher na política. A filósofa norte americana é categórica em afirmar que não basta indagar e fazer uma analítica das condições de reprodução de poder e opressão que estão presentes nas instituições, onde as mulheres buscam espaços para a sua liberação Eu cito: “Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação.” (Butler, 2003: 19)

Tal perspectiva é importante de ser considerada, pois o espaço da política institucional representativa não é um espaço novo conquistado (como os Conselhos, Delegacias, Secretarias) mas o espaço do outro que tem de ser rompido, penetrado e transformado. O outro com esta nova penetração perdeu sua inviolabilidade, sua clausura, seu espaço intacto de reprodução de discurso de poder: torna-se um outro diferente, ou perde sua identidade transformando-se em um nós. Buscar emancipação no lugar do outro é uma ação com dificuldades e efeitos muito específicos. Poder-se-ia pensar em um cenário alternativo de construção de novos espaços pautados por novos acordos de vivência, convivência e formas de tomada de decisão, que ao longo do tempo criariam condições de uma morte por asfixia dos antigos espaços, que definhariam como excrescências ou tradições despoderadas A titulo de exercício poderíamos imaginar a construção de espaços paritários de deliberação pública democraticamente construídos que ocupassem espaços de poder, reduzindo , por exemplo a tradicional forma de representação liberal. Este processo é complexo e necessita acontecer dentro de uma lógica de soma zero, para não criar enclaves.

Butler avança ainda mais em sua análise colocando um outro questionamento central. Para melhor clareza no argumento cito novamente: “Se alguém “é” mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas” (Butler, 2003: 20)

O texto de Butler é provocador e leva a pensar até onde as mulheres quando saem do privado para enfrentar e/ou construir o público tornam-se cada vez menos mulher. Note-se bem que não estou aqui a defender a existência de uma mulher essencial, mas de uma mulher que se fez mulher historicamente em uma dialética de dominação e resistência. As mulheres das quais fala Butler reconstroem no público esta sua condição primeira de mulher e ao sair do local de recolhimento (o privado) interage com outras condições deixando de ser só mulher. A tese de Butler me permite avançar em duas direções, a primeira no que diz respeito ao que eu estava discutindo anteriormente, a entrada da mulher no cenário político como portadora de uma “identidade” mulher; a segunda, a possibilidade de ver a eleitora também fazendo esta saída do privado para o público abrindo mão de sua condição de mulher.
Afirmaria aqui a título de tese a ser investigada, que no espaço político por ser o mais masculino dos espaços é onde a mulher mais aparece como mulher e mais necessita ser menos mulher para ser candidata e ser eleita. Daí fazer sentido a proposta de Butler: “refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigência de se construir um sujeito do feminismo”

O que se constituiria uma “perspectiva feminista”? Butler não avança neste tema, e a noção de perspectiva tem muita potencialidade na medida em que ela de certa forma liberta personas e movimentos do peso da identidade e da própria sujeição como um momento de recriação do “eu”. Foi Young que abordou a questão da perspectiva com muita profundidade, deixando um importantíssimo legado para a nossa reflexão.

Para ela quem identifica grupo com identidade não vê um aspecto fundamental: “ Tal rígida conceptualização de diferenciação de grupo ao mesmo tempo nega as similaridades que muitos membros do grupo têm com aqueles que não pertencem ao grupo e nega os muitos gradientes de diferenciação dentro do grupo” (Young, 2000: 89).

Discutindo o tema da representação Young identifica três formas através das quais a representação se concretiza: Interesse, opinião e perspectiva. Interesse: é “ o que afeta ou é importante para a perspectiva de vida dos indivíduos ou para os objetivos das organizações” Tem um fim específico. A opinião é descrita pela autora como: “princípios, valores e prioridades de uma pessoa que condiciona seus julgamentos sobre que políticas devem ser perseguidas e que fins atingidos.” E, finalmente, perspectiva conforma-se a partir de “experiências diferentes, histórias e conhecimento social derivado de suas posições na estrutura social.”

Young quando analisa as possibilidades de representação está muito preocupada com a questão da diferenciação, tema recorrente em toda sua obra. Para ela diferenciação é um recurso de poder fundamental que não pode ser combatido em nome de um consenso que se oporia ao conflito. A autora é categórica “Contrário àqueles que pensam que políticas de diferenciação de grupos somente criam divisão e conflito, eu argumento que diferenciação de grupo oferece recursos para um publico comunicativo democrático que objetiva a justiça, porque pessoas diferentemente posicionadas tem experiências diferentes e conhecimento social e histórico derivado deste posicionamento que eu chamo isto de perspectiva” (Young, 2000;136)

Tendo presente as diversas questões que tentei levantar ao longo desta exposição passo para a última parte de minha exposição que denominei “notas para reflexão”. Dividirei este momento final em dois conjuntos de questões, o primeiro conjunto diz respeito a posição da mulher na estrutura de dominação; a possibilidade de determinação por estas características estruturais da ausência da mulher nos espaços de poder; a existência de aproximação entre mulheres empoderadas e não poderadas.

O segundo conjunto constitui-se de questões de caráter mais procedimentais informadas pela discussão que tentei levar a efeito nesta apresentação 1. A democracia liberal representativa tal com existe no Brasil tem potencial para incorporar novos sujeitos?; 2. Quais são os limites e possibilidades da reforma política? 3. Quais são os limites e possibilidades de um programa de inclusão política; 4. Quando é imperativo repensar o público como um espaço de emancipação?

Em relação ao primeiro conjunto gostaria de pontuar o seguinte:

1. Não há dúvidas que existe uma estreita relação entre a posição relativa que a mulher ocupa na estrutura de dominação e a sua presença na vida política. No caso específico do Brasil esta estrutura de dominação tem duas características muito particulares que provocam efeitos profundos nas formas de participação da mulher na vida pública: uma desigualdade social abismal; uma hierarquia rígida em relação ao acesso aos direitos.

2. Se esta posição da mulher na estrutura de dominação tem efeitos muito evidentes na exclusão da mulher, todavia não pode ser pensada como uma determinação. Mas como um dado fundamental a ser tomando em consideração, tanto na análise do problema como na decisão de ações concretas para transformara posição das mulheres nos espaços de poder. O entendimento do funcionamento desta hierarquia e dos demais condicionantes estruturais possibilitam pensar construções estratégias de políticas que avancem em relação a políticas meramente procedimentalistas.

3. Desde os seus primeiros passos, a razão de ser do movimento feminista foi empoderar as mulheres (mesmo que o conceito tenha sido incorporado como vocabulários muito posteriormente). Se por uma parte, o movimento logrou conquistas indiscutíveis que atingiram as próprias estruturas de poder no mundo ocidental, por outra parte, tem sido muito tímido em interpelar mulheres para agirem no mundo público e, principalmente político. Butler, citada anteriormente oferece um caminho que credito promissor para pensar esta situação, quando diz que as mulheres não são só mulheres, ou quando se pergunta se é necessário um sujeito feminista. A presença feminista na arena política é desejável? Ou seria mais uma. Daí que a noção de perspectiva de Young possibilita pensar em formas inovadoras da relação entre feministas e não feministas, entre presença da mulher e presença da mulher que incorpora a idéia.

Em relação ao segundo grupo de questões, que chamei de caráter mais procedimental as idéias que proponho para reflexão são as seguintes:

1. A democracia liberal tal como existente no Brasil possui limitações estruturais para incluir novos sujeitos, principalmente, pelos limites que impõe à participação. Mas, mesmo tendo em conta estes limites, parece-me que não ocupamos todos lugares possíveis. Não esgotamos seus limites. Por, exemplo, a ausência da mulher na esfera política não pode ser posta unicamente na conta dos limites democracia liberal.

2. Na atualidade, há uma maligna tendência de ver as reformas políticas como a panacéia para os problemas da política brasileira. As reformas políticas estão focadas em duas questões: moralidade e aumento da eficácia dos agentes políticos. Não cabe aqui discutir se elas atingirão estes objetivos, mas certamente não mudarão em nada a estrutura das relações de poder que afastam as mulheres da esfera política.

3. Tomando como referência as questões até aqui levantadas penso que urge um programa de inclusão das mulheres na vida política, que não poder ser entendido como confecção de cartilhas ou campanhas publicitárias, mas, e eu estou convencida disto, num programa para dar voz as mulheres, construir espaços para que as mulheres falem. Dar a palavra para as mulheres e só as mulheres podem dar a palavra às mulheres, sem construir novas relações de poder. Esta certamente não é a ação suficiente, caminho das pedras, porque o caminho não há, mas certamente é essencial. Não é difícil fazer isto. É daquelas ações que depende da vontade política e de arcar com as conseqüências da desorganização que pode causar. Nós temos humildemente de reconhecer que como feministas as vezes encontramos confortáveis casas, que nos acolhem nos quarteirões identificados por Foucault.

4. Finalmente gostaria de concluir afirmando que é imperativo repensar o espaço público como um espaço de emancipação, diria de emancipações no plural, do quarteirão que a política do controle da peste bubônica tem limitado as mulheres historicamente, no que pese nossas grande e lutadas vitórias


Bibliografia:

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003).
FOUCAULT, Miche. Les Anormaux. (Paris: Gallimard, 1999).

PHILLIPS, Anne, Dealing with Difference: A Politicis of Ideas, or a Politics of Presence? In: BENHABIB. Seyla. Democracy and Difference. (Princenton: Princeton University Press, 1996).

PINTO, Céli R. J. Foucault e as Constituições Brasileiras: quando a lepra e a peste se encontram com os nossos excluídos. In: Educação e Realidade, v. 24 n. 2 jul/dez 1999.
YOUNG, Iris. Inclusion and Democracy. ( Oxford: Oxford University Press, 2000).

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