quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Que poder feminino?

Uma reflexão sobre a representação de mulheres no Legislativo
Patrícia Rangel

Em 2007, a eleição da primeira parlamentar completou 100 anos. Não é surpreendente que tenha sido obra da Finlândia, país de excepcional histórico de acolhimento da mulher na vida política. Infelizmente, na maior parte dos países, as mulheres tiveram de esperar muito para serem eleitas e a representação feminina não tem progredido satisfatoriamente.

Muitos elementos influenciam a performance de candidatas que concorrem a uma cadeira em assembleias legislativas. Contudo, cada vez mais se destacam a relação entre representação de mulheres e tipos de sistemas eleitorais e as novas interpretações sobre os vínculos entre as duas dimensões. Mas será que o sistema eleitoral é, por si só, uma variável suficiente para determinar o sucesso ou o fracasso das eleições de mulheres para cargos legislativos? Em que medida fatores culturais, socioeconômicos e outros fatores políticos também influenciam a presença feminina nos parlamentos?

O intuito do trabalho é analisar o impacto dos sistemas eleitorais na eleição de mulheres e apontar outros fatores que possam influenciar o que chamaremos de feminização das assembleias legislativas, explorando o modelo analítico proposto por Manon Tremblay em sua obra Women and Legislative Representation (2007). A contribuição do artigo se encontra em promover o debate sobre representação, gênero e política. Como afirma Cynthia Enloe (2000), introduzir e aprofundar a questão do gênero nos leva a explorar diferenças políticas enraizadas nas diferenças naturais. A institucionalização de disciplinas e trabalhos focados em gênero, a conformação de grupos de pesquisa, a revisão de conceitos e o aprendizado de teorias feministas fazem parte do esforço de lançar holofotes à existência e ação social das mulheres, empoderando esses atores políticos.

I – Mulheres e política institucional

Definindo poder político como a capacidade de tomar decisões e fazer valer escolhas no mundo público, é patente que as mulheres ainda não alcançaram uma posição de poder na sociedade. Tal fato não justifica, entretanto, nem respalda mitos como apatia política ou desinteresse pelas coisas públicas por parte das mulheres. Como bem explica Lúcia Avelar (2001), tende-se a considerar participação somente formas de ação ligadas ao mundo masculino, de classe média alta, da população branca. Por isso, diversos tipos de envolvimento das mulheres na política não são reconhecidos.

Argumenta Avelar (2001) que as dificuldades encontradas pelas mulheres em função de sua condição não são decorrentes de qualquer situação individual ou deficiências particulares: as razões para a baixa representação feminina são de natureza estrutural. A autora ressalta que, apesar de toda a militância feminista pela igualdade na organização política, os ganhos ainda são poucos, uma vez que a conquista da igualdade formal não é a mesma da igualdade real, e que a ampliação dos direitos de cidadania é um processo lento.

Cada vez mais a representação feminina tem sido considerada fator relevante para se analisar uma democracia, e é hoje amplamente aceita como critério para mensurar a cidadania e a igualdade de oportunidades. Por conta disso, governos e organizações internacionais têm se dedicado a propor e implementar soluções para o problema. Em 1995, a Conferência Mundial sobre a Mulher das Nações Unidas estabeleceu um mínimo de 30% como meta mundial de participação feminina em casas legislativas. Entretanto, dados da União Interparlamentar da ONU (IPU, da sigla em inglês) apontam que, 13 anos depois, essa meta foi alcançada em somente 20 Câmaras de Deputados no mundo.

Trabalhos sistemáticos de monitoramento como o realizado pela IPU (nível de representação alcançado nos parlamentos nacionais) e pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance – Idea (adoção de cotas nas casas legislativas) têm contribuído fortemente para apontar onde há avanços na área.
Segundo a IPU, em fevereiro de 2009, havia 18,4% de mulheres legisladoras no mundo, sendo 18,5% das Câmaras Baixas e 17,6% das Câmaras Altas (IPU, 2009).

II – Fatores que influenciam a representação política de mulheres

1) Representação feminina e sistemas eleitorais

Diversos autores apontam que um dos fatores que ajudam a compreender resultados distintos em países semelhantes é o tipo de sistema eleitoral. Suas características, apesar de não serem decisivas, influenciam as chances de elegilibidade das candidatas. Do ponto de vista da representação formal, podemos considerar os sistemas eleitorais como o principal mecanismo da escolha dos representantes. É importante ressaltar que a opção por um sistema eleitoral não é neutra, pois reflete a concepção de representação política de um país e determina a forma através da qual a vontade do povo será traduzida no Legislativo.

Podemos considerar três grandes famílias de sistemas eleitorais: sistemas majoritários; sistemas de representação proporcional (RP); e sistemas mistos. Cada um deles está baseado em uma concepção de representação política que representa a configuração da assembleia legislativa no momento. Um estudo realizado com base no índice da Freedom House em 2005 indicou que a proporção de mulheres em câmaras baixas ou câmara única de 88 países democráticos se distribuía da seguinte forma: 10,8% em sistemas majoritários, 17,7% em sistemas mistos e 21,1% em sistemas de representação proporcional. Ou seja, assembleias legislativas formadas com base em um sistema proporcional acolhem quase o dobro de mulheres que o sistema majoritário acolhe.

Sistemas majoritários são desvantajosos para a eleição de mulheres na medida em que cada partido político designa apenas um candidato por distrito eleitoral, ao contrário do sistema de RP, no qual cada candidato indica diversos nomes em cada distrito. O sistema de representação proporcional se fundamenta na noção de “microcosmo” contida na definição de representação simbólica. Ele busca reproduzir a configuração da sociedade convertendo votos de cada partido em assentos no parlamento, estimulando os partidos políticos a produzir uma lista balanceada que tenha apelo em todos os setores da comunidade. Consequência direta disso é o favorecimento da eleição de mulheres.

Apesar de a representação proporcional ser geralmente atrelada ao sucesso feminino em eleições, nem sempre esse sistema se mostra amigável às mulheres. A análise dos estudos da IPU (2007) sobre a participação feminina nos permite perceber que, apesar de a maioria dos Estados que possuem mais de 25% de mulheres parlamentares adotarem a RP, muitos dos países que estão nas piores colocações também o fazem. Não devemos, portanto ignorar a influência dos sistemas eleitorais sobre as chances de eleição das mulheres, mas devemos ter em mente que eles interagem com um amplo arranjo de outros fatores, criando uma dinâmica que influencia a proporção de mulheres parlamentares. Outras variáveis relevantes podem ser agrupadas em três categorias: culturais, socioeconômicos e políticas.

2) Fatores culturais

Por cultura entendemos os padrões, valores, crenças e atitudes que permeiam uma sociedade e suas instituições, contribuindo para definir como um povo fala, interage, delibera, enfim, qual é seu estilo de vida. A maior parte das comunidades está enraizada em valores patriarcalistas, sobretudo as sociedades periféricas do capitalismo tardio, nas quais há forte legitimação de papéis bastante distintos para homens e mulheres. Esse fato implica numa forte resistência das instituições partidárias e do eleitorado à participação político-institucional de mulheres, associadas à esfera privada, às tarefas domésticas e ao cuidado.

São sociedades transpassadas pela divisão sexual do trabalho, que perpetua valores machistas no estabelecimento e desenvolvimento de papéis sociais. Para Nancy Fraser, a capacidade destrutiva dos valores androcêntricos estaria em seu exercício cotidiano e nos processos de socialização mais básicos de um sistema de crenças que situa as mulheres em posições de inferioridade. Na maioria dos casos, a primeira barreira à participação política feminina já aparece em casa.

Daí a necessidades de se estabelecer normas que condicionem práticas sociais mais igualitárias, de modo a alterar a cultura política e a mentalidade da população. Os próprios partidos apresentam resistência à incorporação das mulheres na arena política, dada a visão geral conservadora sobre o papel social da mulher. Aliando-se os valores patriarcais às variáveis que determinam uma baixa demanda por candidatos, resulta-se em uma realidade na qual os partidos não tomam como prioridade a presença feminina em cargos políticos. Faz-se necessário então desconstruir padrões institucionalizados de valores culturais que privilegiam as masculinidades e desconsideram o que está no escopo do feminino, impedindo o estabelecimento de uma verdadeira justiça, principalmente no âmbito material.

3) Fatores políticos

Quando falamos em fatores políticos, estamos nos referindo àqueles elementos que moldam a demanda por candidatos. Há quem insista que o incremento da participação feminina depende mais dos partidos políticos do que do sistema eleitoral ou dos eleitores. Para Araújo & Alves (2007), os partidos de esquerda teriam uma tendência maior a estimular a participação feminina e a eleger mais mulheres.

Em relação ao âmbito organizacional, procedimentos internos institucionalizados, regras claras e vida partidária ativa seriam pontos que incentivam a participação e o recrutamento eleitoral de mulheres. Sobre o sistema partidário, pode-se considerar uma tendência dos sistemas pluripartidários à estabilidade institucional e, consequentemente, a proporções mais elevadas de mulheres eleitas. Uma assembleia onde atuam vários partidos políticos, portanto, possuiria mais chances de eleger mulheres que uma casa bipartidária.

As cotas para o sexo minoritário nas listas eleitorais, por sua vez, apresentam-se como fator de impacto imediato no processo de feminização das casas legislativas. Elas funcionam como mecanismos de discriminação positiva para combater o problema estrutural da baixa participação feminina e corrigir a injustiça do monopólio da representação masculina e dos interesses desse grupo social (AVELAR, 2001). A adoção de cotas é um artifício positivo nas estratégias eleitorais, sobretudo quando a política se torna personalizada e extremamente volátil. Esse artifício foi recomendado pela primeira vez em 1986 pela conferência ministerial europeia sobre a igualdade, e hoje é uma estratégia cada vez mais utilizada para reduzir a sub-representação feminina. Os países que possuem maior número de mulheres em seus parlamentos são os que desenvolvem leis de igualdade entre os sexos.

4) Fatores Socioeconômicos

Trabalhamos aqui com fatores socioeconômicos enquanto elementos que moldam as condições materiais que favorecem ou impedem que mulheres se dediquem à política como candidatas. Uma vez que os partidos políticos recrutam poucas, é natural que as mulheres sejam sub-representadas nas assembleias legislativas. Alguns acadêmicos argumentam que os partidos não convocam mulheres por não encará-las como candidatos em potencial. Segundo eles, se as condições socioeconômicas das mulheres fossem mais elevadas, haveria um crescimento análogo na presença destas em partidos e nas casas legislativas.

Relacionadas à falta de condições materiais suficientes estão as responsabilidades domésticas, variável que pode ser apontada como um dos principais fatores que impedem as mulheres de se dedicarem à política. Aproximadamente 30% das legisladoras não têm encargos familiares. Parlamentares mulheres também possuem mais que o dobro de chances do que os homens de serem solteiras.

Segundo Avelar (2001), a sub-representação política da mulher deriva da lógica de marginalização social. Na sociedade capitalista, possui maior valor social o indivíduo que tem maior status ocupacional. As mulheres acabam por desenvolver menor status social, o que diminui seu valor social e político. A ideologia do desempenho, baseada na tríade qualificação, posição e salário também gera implicações diretas nas relações de gênero, de modo a perpetuar a desigualdade entre os sexos e o mito de inferioridade da mulher.

III – Conclusões

A sub-representação das mulheres é um sintoma do déficit democrático presente em diversos regimes eletivos. Falamos em déficit democrático pois, considerando o princípio da representação descritiva, uma assembleia legislativa só é considerada representativa se sua composição for uma reprodução reduzida da sociedade. Assim, podemos dizer que existe um déficit de representação em Estados nos quais não existe paridade entre os sexos nas casas legislativas.

Vimos, neste breve compêndio de ideias, que as regras eleitorais influenciam diretamente as chances das candidaturas femininas. Observamos também que a forma como a sociedade se organiza materialmente e a cultura têm peso no processo de feminização das assembleias legislativas. Acredita-se que a política seja uma arena predominantemente masculina, pensamento que se reflete no baixo índice de participação das mulheres nesse espaço e reproduz uma situação de marginalização. As desigualdades entre os sexos são perpetuadas por mecanismos sutis de dominação, que naturalizam e legitimam a diferença e funcionam como o habitus de Bourdieu: disposições duráveis incorporadas desde a mais tenra infância que pré-moldam oportunidades e proibições de acordo com condições objetivas.

Nesse sentido, Clara Araújo e Celi Scalon (2005) indicam que, a despeito do desenvolvimento de uma cultura mais igualitária, as práticas ainda são exercidas de forma bastante tradicional e certas desigualdades não são percebidas como injustas. Com base num survey que analisou percepções sobre papeis sociais, as autoras apontaram que grande parcela da população ainda pensa que existem atividades distintas para homens e mulheres.

Retomando as perguntas de partida deste trabalho, podemos fazer algumas afirmações:

1)Os sistemas eleitorais exercem grande influência sobre o processo de feminização das Câmaras Legislativas.

2)Cada tipo de sistema eleitoral possui características que, em determinados momentos, favorece ou prejudica a eleição de mulheres, mas isso não pode ser tomado como uma regra universal e imutável. Os sistemas de representação proporcional são tomados como os mais favoráveis à feminização das assembleias legislativas, mas em alguns casos, não impediram mulheres de ter uma performance insatisfatória em eleições. O sistema majoritário elegeu mais legisladoras do que o sistema proporcional ou o sistema misto nos casos da Escócia e do País de Gales. É necessário afastar generalizações e adotar uma perspectiva microanalítica capaz de capturar detalhes importantes. Outros autores sugerem a realização da análise com base em contracategorias.

3)É impossível analisar os impactos do sistema legislativo sobre o número de mulheres legisladoras eleitas sem considerar as cotas e a atuação dos partidos políticos.

4)Além dos partidos e das cotas, há outros fatores que interagem com estes e com o sistema eleitoral e acabam por influenciar a eleição de mulheres nas assembleias legislativas. Estes são aspectos culturais, socioeconômicos e políticos. O impacto desses fatores é maior durante o processo de seleção de candidatos pelos partidos.

Referências

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