quarta-feira, 27 de maio de 2009

“Saúde Reprodutiva das Mulheres – direitos, políticas públicas e desafios”

Os movimentos feministas, em suas denúncias públicas sobre as diversas formas de violação de direitos e do exercício efetivo da cidadania das mulheres, reivindicaram a liberdade sexual e o direito de decidir sobre seus corpos como parte central para o exercício de projetos de vida plenos e autônomos. Abordamos como as diferentes estratégias de sujeição dos corpos femininos visam sustentar e manter não somente a hierarquia (dominação/subordinação) de gênero, mas também as hierarquias étnicas e raciais. E ademais, deciframos a centralidade dessas relações hierárquicas para a exploração capitalista.

O corpo passar a ter uma dimensão fundamental na teoria e prática feministas. Como reafirmaram as vozes feministas da Articulação de Mulheres Brasileiras, das companheiras guatemaltecas da Batucada Feminista e de outras latino-americanas, durante o Fórum Social Mundial de 2009, “nosso corpo é nosso território”. Mais do que a dimensão de que é parte de nós – idéia expressa em uma das insígnias feministas mais conhecidas, Nosso Corpo Nos Pertence! – o corpo passa a ser revisitado como constitutivo de nós mulheres: Eu sou o Meu Próprio Corpo!

Apresentamos alguns marcos para pensarmos a constituição do que as feministas cunharam com a ideia de direitos sexuais e reprodutivos. Se a sexualidade e a reprodução são elementos presentes na constituição de nós seres humanos, porque então é tão difícil avançarmos em mecanismos legais que garantam a liberdade do exercício pleno da sexualidade e da reprodução?

Falar dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos no marco dos direitos humanos significa reconhecer que são universais (pois abarcam os seres humanos desde seu nascimento), interdependentes (conectam-se com os demais direitos humanos) e indivisíveis (são vividos e atuam de um modo conjunto e integral). Isto significa dizer que, mesmo tendo a saúde maior ênfase como o arcabouço da construção dos direitos sexuais e reprodutivos (falamos sempre na ou da saúde sexual e reprodutiva), a efetivação dos mesmos deve ocorrer conectada com outros campos da vivência da cidadania, como o campo político e as dimensões culturais, pensados para além de normas legais.

Na colonização, nas raízes da dominação patriarcal, racista, etnocêntrica, o feminismo negro denunciou a coerência entre os termos das dominações racial e de gênero e o potencial de exclusão que ambas têm. Elas revelaram a teia ideológica que justificou, durante a colonização, a violação sexual das mulheres africanas e indígenas – o chamado estupro colonial – e, por outro lado confinou as mulheres brancas (de origem europeia) ao espaço doméstico, submissas à rígida moral sexual católica.

O tráfico internacional e o comércio nacional escravagista destruíram as diferentes formas de relações de parentesco e conjugalidade existentes entre africanos de diversos grupos étnicos; separaram os filhos de suas mães e pais; e muitas vezes inviabilizaram uniões heterossexuais, posto que, no Brasil, os senhores de escravos consideraram a reprodução local da mão de obra africana economicamente desvantajosa e, por isso mesmo, separaram os homens das mulheres, inviabilizando a convivência e o seu relacionamento afetivo-sexual.

No período pós-abolição, para as mulheres negras a abolição da escravatura significou não só a continuidade ou inserção no trabalho doméstico nas casas dos brancos, mas também o ingresso num mercado de trabalho informal remunerado. Coube a elas a responsabilidade de assumir, quase sempre sozinhas, a sustentação material do grupo familiar, experiência que as mulheres brancas só viriam a experimentar muito mais tarde.

No início do século XX, a lógica patriarcal, capitalista e racista permaneceu oferecendo condições distintas para brancos e negros e para as próprias mulheres destes dois grupos, definindo trajetórias específicas ao longo do período. No âmbito das relações afetivo-sexuais e de parentesco, o padrão de dignidade ficou restrito às famílias nucleares, constituídas em casamentos legalmente monogâmicos e indissolúveis, católicos, às quais estavam assegurados os direitos de herança, de proteção social e as obrigações decorrentes da paternidade, respeitada a hierarquia de gênero.

Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, há que se destacar o assédio sexual recorrente contra as trabalhadoras domésticas e a exploração sexual forçada como elementos que apenas atualizaram as relações sociais de gênero e raça. Transpuseram para este momento o comportamento sexual do período colonial e escravagista, marcado pela violência e pela negação de direitos.

Na segunda metade do século XX, o processo de industrialização ganhou celeridade a partir da década de 60. A expansão deste novo campo do mercado de trabalho proporcionou a sua abertura para a participação das mulheres, em especial às brancas, dado que às negras coube, via de regra, ocupar parte das lacunas do trabalho que as mulheres brancas deixaram no espaço doméstico.

O contexto político interno, combinado à composição de forças que emergiu pós-guerra no plano global, configurou uma arena política vitalizada, a partir da sociedade. Fatores como a capacidade de mobilização dos movimentos sindicais, o caráter libertário dos movimentos culturais, as manifestações por liberdade sexual, o crescimento da teologia da libertação (inclusive da teologia feminista), entre outros elementos contribuíram para essa vitalização. A partir do Estado, emergem governos de perfil político populista e perfil econômico desenvolvimentista.

Às possibilidades de maior liberdade no exercício da sexualidade, proporcionada pelos contraceptivos, sobrevêm o autoritarismo das políticas de controle da natalidade. O único respiro nos anos de chumbo da ditadura veio já no final, com a aprovação, em 1977, da Lei do Divórcio. Tal lei foi sancionada contra a vontade da Igreja Católica, que insistia em submeter a sociedade às suas exigências quanto à indissolubilidade do casamento, ou à resignação a viver na marginalidade das relações de fato, sem proteção da lei.

Assim como no período colonial, a estratégia de dominação pela miscigenação se ergueu sobre os corpos e a sexualidade das mulheres. Nesse momento, com a “transição demográfica para o desenvolvimento” – eufemismo para nomear o autoritarismo das políticas de controle da natalidade. As mulheres negras, situadas nos estratos mais empobrecidos da população, foram o alvo principal dessas políticas autoritárias de controle da natalidade.

É com a promulgação da Lei da Anistia, em 1979 e a consequente volta de muitas feministas ao país, que se inaugura o debate em torno dos direitos reprodutivos. O slogan “Nosso Corpo nos Pertence”, o tema do aborto e da contracepção expressam a luta política das mulheres pela autonomia reprodutiva e sexual.

Em meados da década de 80, do ponto de vista da agenda política dos movimentos de
mulheres, relacionada à sexualidade e reprodução, foi fundamental a consistência dos
argumentos feministas para explicitar propostas em relação ao planejamento familiar, à liberdade sexual e pelo fim da violência contra as mulheres. Feministas autônomas (integrantes de ONGs ou militantes independentes) demandavam mais políticas públicas de saúde e mudanças na legislação no campo dos direitos reprodutivos. O vigor do feminismo na sua movimentação pela saúde da mulher mostraria seus primeiros frutos, com a proposição do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983. No entanto, após anos de luta pela criação e implementação do PAISM como uma política dirigida à saúde integral das mulheres, pode-se concluir que seus princípios continuam atuais, mas que não se constituiu enquanto política pública. As dificuldades de implementação, em que pese o esforço
dos movimentos feministas para sua efetivação, e mesmo a sua retomada nos anos 90, não impediu que o PAISM fosse praticamente extinto, havendo um baixo índice de incorporação pelos sistemas municipal e estadual de saúde no país.

Se os temas reprodutivos emergem na década de 70, é nos anos 80 que o debate em torno do aborto e da sexualidade ganha força. Nos anos 90, a essa agenda é incorporada a questão da concepção, do exercício da maternidade e das novas tecnologias reprodutivas. Referem-se também ao direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência ou discriminação, independentemente de sexo, gênero, orientação sexual, idade, raça, classe social religião, deficiência mental ou física. Incluem o direito de receber educação sexual ampla e sem preconceito, exercer a sexualidade independentemente da reprodução e praticar sexo com segurança e proteção, inclusive com a opção pelo não exercício.

Em 1985 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), importante organismo na defesa dos direitos reprodutivos, cuja atuação junto ao Ministério da Saúde, na articulação com organizações da sociedade civil e na publicação de documentos e cartilhas referentes à saúde reprodutiva, foi decisiva para a definição das políticas públicas para as mulheres. Como parte dessa atuação, em 1986, os movimentos de mulheres juntamente com o CNDM articularam a Campanha “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher” e realizaram em Brasília um
encontro que reuniu mais de 2 mil mulheres. Nesse encontro foram discutidas as propostas dos movimentos de mulheres para a Assembléia Nacional Constituinte e elaborada a “Carta das Mulheres aos Constituintes”, trazendo demandas e propostas em diversos campos, inclusive no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

A luta formal pela garantia dos direitos estabelecida pela instituição da Assembléia Nacional Constituinte em 1987 também opôs, de um lado, as organizações e movimentos feministas, e de outro, a Igreja Católica e os grupos controlistas. O aborto vai se constituir no grande divisor de águas entre as feministas e a Igreja, que ao rebater as propostas pela sua descriminalização, reafirma sua luta pela hegemonia social de um discurso moral. No entanto, as forças conservadoras e religiosas representadas na Constituinte (naquela época, quase que exclusivamente católicas), que se opunham frontalmente aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sofreram inúmeras derrotas, como a não inclusão do direito à vida desde a concepção
no texto da Carta Magna.

Os termos do novo pacto nacional, consolidado na Constituição, orientaram o país no sentido de superar as injustiças e reduzir a enorme dívida histórica, inclusive no que diz respeito às mulheres, à população negra e aos povos indígenas. Foram estabelecidos novos e avançados marcos em termos de direitos sociais, direitos civis e de soberania nacional, como: a igualdade entre homens e mulheres, a proibição de todo tipo de discriminação, o reconhecimento da união estável (entre homem e mulher, mantendo a negação da formação familiar por pessoas do mesmo sexo) como entidade familiar; o reconhecimento da função social da maternidade, o direito ao planejamento familiar, o veto a políticas coercitivas de controle populacional, a
garantia de que a saúde é direito de todos e dever do Estado e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS); os direitos dos trabalhadores, inclusive para as trabalhadoras domésticas (ainda que de forma diferenciada e incompleta), a demarcação das terras indígenas, a garantia da terra às populações remanescentes de quilombos, a criminalização do racismo, a garantia de desapropriação de terras para a reforma agrária, o voto para os analfabetos.

A luta pela saúde reprodutiva das mulheres conectava-se à luta por um sistema de saúde universal, igualitário e gratuito. A consagração na Constituição Federal do SUS, fundado nos princípios da universalidade, igualdade, gratuidade, descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, representou uma conquista para a cidadania e um novo paradigma no campo da saúde pública. A saúde torna-se um dever do estado e um direito humano de todas as pessoas, independentemente de cor, raça, religião ou local de moradia. Na perspectiva feminista, a integração das políticas públicas de saúde da mulher na própria concepção do SUS, objetivava atingir o maior número de mulheres e em todos os lugares do país. Isso possibilitava o acesso à saúde de populações femininas historicamente negligenciadas em suas especificidades, como as mulheres negras, as rurais e indígenas.

Em meio a esse importante e efervescente contexto social e político é criado na capital do país o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), no ano de 1989.
Desde então, tem sido ator social fundamental na luta feminista pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos.

Trabalhando em articulação com os movimentos feministas e de mulheres, e participando de redes e articulações da sociedade civil, vem atuando junto ao Congresso Nacional e Executivo, monitorando as proposições legislativas, fazendo advocacy junto às/aos parlamentares, informando os movimentos sociais (principalmente movimentos feministas, de mulheres e de direitos humanos) e contribuindo para as conquistas legais das mulheres.

Em 1991, foi criada a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos. No mesmo ano, foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Esterilização, que explicitou os riscos e os abusos dessa prática para a saúde das mulheres, quando conduzida de forma indiscriminada e clandestina.

Em 1995, um grupo de parlamentares fundamentalistas, católicos e evangélicos, apresentou proposta de emenda constitucional para, mais uma vez, tentar criminalizar o aborto em qualquer circunstância. Uma ampla campanha do movimento de mulheres, em todo o país, leva os conservadores a mais uma derrota fragorosa: o Plenário da Câmara dos Deputados, com 351 votos contra, 33 a favor e 16 abstenções rejeitou terminantemente, em abril de 1996, a PEC dos fundamentalistas.

O debate contribuiu para que o ex-deputado Eduardo Jorge (PT/SP), que se identificava com as propostas feministas, apresentasse o Projeto de Lei 209/91, propondo a regulamentação do planejamento familiar e coibindo o processo de esterilização indiscriminada da população brasileira. Em 1996, o projeto foi aprovado e transformado na Lei nº 9.263/1996, no entanto, com veto presidencial exatamente no que se referia à esterilização cirúrgica. Em 1997, o grupo conservador amargaria nova derrota, junto aos defensores do controle de natalidade, haja vista a derrubada dos 14 vetos presidenciais à Lei do Planejamento Familiar.

Vigilância, mobilização e pressão permanente dos movimentos de mulheres possibilitaram que em 1998, o Ministério da Saúde publicasse a Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes - tal norma técnica foi revista em 2005. Mesmo sem trégua dos fundamentalistas, em um período de nove anos (a contar da instalação do primeiro serviço em São Paulo, em 1989), foram implementados 17 serviços de aborto legal em oito cidades brasileiras.

Relacionado ao planejamento familiar ou, mais adequadamente, ao planejamento reprodutivo, está o livre exercício da sexualidade. Garantir o planejamento familiar significa compreender que esse não se refere apenas ao momento de ter filh@s, mas também a possibilidade de não os ter, isto é, a uma vida sexual sem compromisso reprodutivo. Além disso, o exercício da sexualidade livre de qualquer coação requer o respeito absoluto às escolhas das mulheres, ou seja, respeito à sua orientação e/ou desejo sexual.

Em se tratando de direitos sexuais e reprodutivos, foi de enorme importância a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994. Confrontando as políticas autoritárias e controlistas, o Plano de Ação aprovado afirmou o direito de todos os casais e pessoas a decidirem livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e o momento de ter filhos, e de tomar decisões relativas à reprodução livre de discriminação, coerção e violência.

Na América Latina, a necessidade de afirmar os direitos sexuais e reprodutivos instituídos no marco normativo internacional motivou a realização de uma Campanha para a elaboração de uma Convenção Interamericana dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. A Campanha foi iniciada em 1999 por um conjunto de organizações feministas da América Latina e Caribe, tais como o Cladem, o Cfemea, a Rede Feminista de Saúde, as Católicas pelo Direito de Decidir, dentre outras organizações que integram a Aliança Regional de ONGs, pela criação de uma
Convenção específica sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos. Esta Aliança Regional tem efetuado ações no sentido de chamar a atenção dos governos (incluindo o brasileiro) e da Organização dos Estados Americanos (OEA) para a urgência da realização dessa Convenção.

Na década que sucedeu à Constituinte, a contradição evidente entre a maior concentração da riqueza (viabilizada pela adoção do modelo neoliberal) e a democratização política, conduziu a processos de mudança. Os movimentos de mulheres tiveram uma atuação expressiva com vistas à transformação social. Em 2002, dez instâncias nacionais desses movimentos somaram esforços e mobilizaram um grande ciclo de debates em todo o país para a construção da Plataforma Política Feminista, que foi aprovada na I Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras. Dos desafios apontados pelas mulheres e feministas que aprovaram a plataforma, em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, destacamos: a garantia da laicidade do Estado; o reconhecimento a todas as pessoas do direito de constituir diferentes modalidades de família; o comprometimento com a luta pelos direitos civis, sociais, sexuais e reprodutivos de lésbicas, gays, travestis, transexuais, bissexuais e transgêneros; o reconhecimento da descriminalização e legalização do aborto como um direito de cidadania e uma questão de saúde pública; a capacitação de profissionais dos serviços públicos de saúde para a prevenção de DST/AIDS
entre mulheres, lésbicas e heterossexuais; a promoção e difusão de estudos e pesquisas visando ampliar a compreensão sobre a influência da violência doméstica e sexual na liberdade sexual e reprodutiva e na saúde da mulher; a reformulação e fortalecimento dos programas de educação sexual nas escolas, adotando a perspectiva da historicidade das relações de gênero para superar a visão biologizante e determinista que vem sendo dada à temática da sexualidade.

Foi criado, em 2003, pela primeira vez, um organismo governamental no primeiro escalão para promover a igualdade racial, e outro para tratar das políticas públicas para as mulheres. Em seguida, convocadas as conferências nacionais para discutir as diretrizes das políticas de promoção da igualdade racial (2005) e para as mulheres (2004). Destacamos ainda: a) a discussão e negociação no processo da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres do que viria a ser o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres; b) a proposição por organizações feministas do anteprojeto e debate sobre a Lei Maria da Penha (que visa enfrentar e combater a violência doméstica contra as mulheres); c) a decisão da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres de priorizar a revisão da legislação punitiva sobre o aborto; o debate e a elaboração de anteprojeto de lei para a legalização do aborto por uma Comissão Tripartite convocada pelo Governo Federal; d) a definição de um Plano Nacional de Saúde da População Negra em diálogo com os movimentos negros; além de uma série de declarações do presidente Lula e de seus ministr@s sobre a necessidade de se compreender o tema da legalização do aborto como questão de saúde pública e reconhecendo a obrigação do Estado em promover a saúde das brasileiras.
Nesse sentido, foi aprovada pelo Conselho Nacional da Saúde (2007), a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, cujo objetivo é combater a discriminação étnico-racial nos serviços e atendimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, bem como promover a equidade em saúde, da população negra.

Por outro lado, as lideranças políticas religiosas, conservadoras e fundamentalistas, muitas delas ligadas a oligarquias regionais, obtiveram vantagens na distribuição de cargos políticos e recursos públicos para favorecer seus interesses particulares e privados e o de suas clientelas.

Conhecedoras e promotoras da forma patrimonialista como o Estado brasileiro historicamente tem operado, tiveram oportunidade de crescer em termos de poder político dentro do próprio governo.

Foi no esteio desses acontecimentos, que se multiplicaram os projetos de lei para criminalizar, punir, restringir, cercear, controlar a sexualidade feminina e a reprodução humana.

Prosperaram retrocessos como: punir a prática do aborto com penas mais severas do que as previstas para o crime de estupro; registro compulsório de gravidez no SUS para o controle das gravidezes das brasileiras, disque-denúncia aborto, proibição da prática do aborto em qualquer caso (mesmo risco de vida das mulheres), “bolsa-estupro” para dissuadir as mulheres de realizarem o aborto no caso de gravidez fruto de violência sexual etc.

Dentre os direitos reprodutivos, o direito ao aborto é, sem dúvida, o tema mais polêmico e controverso na sociedade brasileira. A descriminalização e legalização do aborto têm sido uma reivindicação feminista de longa data e objeto de maior enfrentamento moral e ético em nosso país. A importância do tema para os direitos reprodutivos das mulheres é inegável e, buscando ampliar o leque político de aliados nesse controverso tema, as feministas iniciam um profícuo diálogo com setores médicos, acadêmicos e demógrafos.

A Conferência sobre o aborto (1991) foi um momento importante para essa discussão, denunciando a morte de mulheres em virtude de abortamentos inseguros e exigindo a descriminalização e legalização do aborto no país. Em 1994, acirram-se as discussões sobre o aborto e o planejamento familiar no Congresso Nacional. Várias campanhas são realizadas pelos movimentos de mulheres: Mulheres na Revisão Constitucional - Nenhum Direito a menos!, Campanha Nacional pela Vida das Mulheres, Campanha Nacional pela Regulamentação do Atendimento aos Casos de Aborto previstos em Lei na Rede Pública de Saúde e Campanha pelos Direitos Humanos das Mulheres. Em 1997, a Campanha Nacional pela Regulamentação do Atendimento dos Casos de Aborto Previstos por Lei na Rede Pública reabre o debate sobre a necessidade de garantir o abortamento legal no país.

Em fevereiro de 2004, os movimentos feministas criam, em Brasília, as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, uma articulação política ampla pelo acesso ao aborto legal e seguro, formada por inúmeras redes e organizações feministas. Desde sua criação, as Jornadas vêm buscando e conseguindo apoio de diferentes setores da sociedade para a luta pela legalização do aborto no Brasil, demonstrado a força da articulação dos movimentos de mulheres.

Em julho de 2004, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, convocam e realizam a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a participação de quase 2 mil mulheres de todo o país. Na plenária da I Conferência, as mulheres aprovaram, por ampla maioria, a revisão da legislação punitiva do aborto. Em 2007 é realizada a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres e novamente as mulheres discutiram e aprovaram a proposta de legalização do aborto, bem como o encaminhamento pelo poder Executivo da proposta produzida pela Comissão Tripartite ao poder Legislativo. No entanto, dessa vez a reivindicação das mulheres em relação à revisão da legislação punitiva sobre o aborto não foi incluída no II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

O ano de 2007 marca também o início de uma nova legislatura no Congresso Nacional (53ª Legislatura), com a entrada de nov@s parlamentares em cena. Essa legislatura é marcada pelo forte conservadorismo em relação à atuação dos movimentos sociais e temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos sofrem constantes ameaças de retrocessos e dificuldades de avanços. Foram criadas diversas Frentes parlamentares contra o aborto e o discurso fundamentalista religioso cresce e se articula. Na mesma linha das propostas que buscam retrocessos na legislação e políticas públicas relacionada aos direitos reprodutivos, ao final de 2008, foi assinada a proposta de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, conhecida como CPI do Aborto, que representa mais uma nítida tentativa de criminalizar as mulheres e os movimentos feministas que lutam pela descriminalização e legalização do aborto no país.

Com intuito de fortalecer as mobilizações sociais em torno do direito ao aborto, foi criada e lançada a Frente Nacional pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto em setembro de 2008. Atualmente a Frente Nacional está se organizando em todos os estados do Brasil com o objetivo de articular pessoas de diferentes movimentos e setores sociais, para lutar pelo direito ao aborto seguro e denunciar os processos de criminalização das mulheres em curso.

Em que pese os avanços legais e os esforços feministas, o acesso aos serviços públicos de saúde de qualidade e o exercício pleno da autonomia reprodutiva ainda não são uma realidade no país. As mulheres ainda sofrem com a omissão legal, com o preconceito, a discriminação e a fraca atuação dos poderes constituídos na implementação dos seus direitos fundamentais. Para sua total realização impõe-se que o Estado brasileiro cumpra com as determinações constitucionais e internacionais e considere a saúde reprodutiva das mulheres como prioridade. A existência de um marco constitucional que estabelece direitos e garantias fundamentais precisa
ser aplicado por todos os poderes constituídos.

A permanência da norma penal que criminaliza o aborto no Brasil fere os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e o direito fundamental à saúde, a liberdade, dignidade e autonomia das mulheres. Nesse sentido, a descriminalização e legalização do aborto é medida urgente para a garantia do acesso à saúde das mulheres e redução da mortalidade materna em decorrência de abortamentos inseguros. A magnitude do aborto revela um grave problema de saúde e não um problema policial e, o Estado tem o dever de atuar a partir desse entendimento. O oferecimento em todo o país do serviço de abortamento legal é um dos mecanismos para a redução de mortes por aborto inseguro e exercício de direito decorrente da liberdade sexual e reprodutiva. Além disso, a distribuição da anticoncepção de emergência em todos os serviços de saúde, públicos ou conveniados, é uma imposição do direito à saúde e acesso à medicação.

No mesmo sentido, políticas públicas dirigidas especialmente às mulheres negras, lésbicas e aquelas em situação de maior vulnerabilidade social, é medida urgente para a eliminação da discriminação étnico-racial e da lesbofobia nos serviços de saúde e de promoção da saúde sexual e reprodutiva.

Por fim, ressaltamos a importância da ampliação das articulações e mobilizações com outrosmovimentos sociais e demais setores da sociedade, para contribuir na construção de um debate público amplificado que fortaleça as bases de sustentação e do entendimento de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sua legislação e implementação, são políticas que visam fortalecer e aprimorar a democracia. Reconhecer as mulheres como sujeitos políticos éticos capazes de tomarem decisões sobre seus projetos de vida é essencial para uma sociedade inclusiva e com cidadania plena para as mulheres.

Campos, Carmen Hein de; Oliveira, Guacira Cesar de. Brasília: CFEMEA: IWHC, Fundação H. Boll, Fundação Ford, 2009. 124p. – (Coleção 20 anos de cidadania e feminismo, 3)

Resumo Executivo que traz trechos da publicação do mesmo nome, seguindo cronologia histórica, sem qualquer incidência no conteúdo disposto na redação original. O inteiro teor da publicação encontra-se disponível em: http://www.cfemea.org.br/pdf/colecao20anos_saudereprodutivadasmulheres.pdf.


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