quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

“Se me deixam falar...” (Domitila)

Tese do II Congresso Nacional das Mulheres do PPS – 2007

No atual estágio do processo civilizatório da Humanidade é inadmissível constatar o grau de desigualdade ainda existente entre homens e mulheres, como faz o Relatório sobre a Situação da População Mundial 2005 – A Promessa de Igualdade: Eqüidade de Gênero, Saúde Reprodutiva e os Objetivos do Milênio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

Uma situação que atinge, diretamente, a qualidade de vida de bilhões de seres humanos nas mais diversas regiões do planeta, afetando os índices de pobreza, educação, saúde, mortalidade, violência, direitos humanos e eficiência econômica.

A promoção da igualdade de gênero requer investimentos diretos em educação, saúde, oportunidades econômicas e direitos políticos que podem possibilitar, em longo prazo, o desenvolvimento sustentável das próximas gerações.

“Não podemos tornar a pobreza parte do passado até darmos um fim à violência contra mulheres e meninas, até que as mulheres desfrutem integralmente de seus direitos sociais, culturais, econômicos e políticos”, afirma Thoraya Ahmed Obaid, Diretora-Executiva do UNFPA.

Da declaração de Thoraya, uma brilhante síntese do Relatório, selecionamos algumas constatações que achamos merecer atenção especial:

1. Muitos líderes defendem o livre comércio para estimular o crescimento econômico. Chegou o momento de conclamar ações que liberem as mulheres da discriminação, da violência e dos problemas de saúde que elas enfrentam todos os dias. Tais ações poderão desencadear o poder de metade da humanidade, permitindo que tais pessoas contribuam para o crescimento econômico. A desigualdade é ineficiente do ponto de vista econômico: representa uma violação dos direitos humanos e um risco para a saúde das pessoas. O cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio requer que homens e mulheres saudáveis trabalhem juntos, em pé de igualdade. Como proclamaram os líderes mundiais em recente reunião de Cúpula, o progresso das mulheres será o progresso de todos.

2. Atualmente, problemas de saúde reprodutiva – dentre os quais o HIV/Aids – permanecem como a principal causa de morte e doença entre mulheres e meninas na faixa dos 15 aos 44 anos. Todos os anos, mais de meio milhão de mulheres e meninas morrem devido a complicações relacionadas à gravidez – na maior parte das vezes, perfeitamente evitáveis..

3. Maiores investimentos em saúde sexual e reprodutiva são uma necessidade urgente para a melhoria da saúde materna, a redução da pobreza e o combate ao HIV/Aids. Em todo o mundo, a face do HIV/Aids é cada vez mais feminina, e cada vez mais jovem. Dos 40 milhões de pessoas que, sabe-se, convivem com o vírus, cerca de 50% são mulheres. Não conseguiremos reverter a epidemia de Aids até que consigamos eliminar a discriminação e a violência contra mulheres e meninas. Na ausência de uma cura, a prevenção é a primeira linha de defesa para deter a epidemia.

4. Atualmente, pagamos um preço alto demais para a violência de gênero. Estima-se que uma em cada cinco mulheres no mundo será vítima de estupro ou de tentativa de estupro ao longo de sua vida. Uma em cada três será espancada, forçada a ter relações sexuais, ou sofrerá outras formas de abuso, em geral por parte de um familiar ou conhecido.

5. Embora, atualmente, mais mulheres e meninas recebam educação do que em qualquer outro período na história, dois terços de todas as pessoas analfabetas no mundo ainda são mulheres. Mulheres e meninas educadas têm maior probabilidade de adiar a maternidade, ter famílias menores, e imunizar e educar seus filhos. Elas também têm uma probabilidade maior de ter bons empregos e rendas mais altas.

6. A legião de jovens é, hoje, a maior da história, mas as necessidades dos jovens são freqüentemente ignoradas pelos formuladores de políticas públicas e pela comunidade de apoio ao desenvolvimento.

7. O mundo pode acabar com a pobreza até o ano de 2015. O mundo pode cumprir as promessas feitas às populações mais marginalizadas do mundo. Trata-se somente de uma pequena fração do trilhão de dólares alocado para gastos militares, ou das enormes somas perdidas nas redes de corrupção a cada ano. É o mesmo valor estimado para a reconstrução das zonas destruídas pelo furacão Katrina.

Dados do Banco Mundial revelam que, nas nações desenvolvidas, as mulheres ganham 77 centavos para cada dólar que os homens recebem e, nas nações em desenvolvimento, apenas 73 centavos. O Relatório do UNFPA mostra que, a cada minuto, uma mulher morre em decorrência de problemas na gravidez, alcançando o impressionante número de 500 mil mortes anuais.

A desigualdade de direitos faz com que o risco delas contraírem o vírus HIV e desenvolverem a Aids seja maior. E mais grave: o uso do preservativo, em muitas regiões do mundo, é uma decisão masculina. O resultado é que a contaminação vem crescendo entre as mulheres, revertendo o quadro anterior de maior prevalência nos homens. Esta lamentável realidade inclui as casadas e atinge, especial e infelizmente, as mais jovens.

Como se vê, a situação mundial é preocupante e os avanços ocorrem em ritmo lento, muito aquém do desejável. É fato, porém, que muitos países, inclusive o Brasil, trabalham para diminuir as disparidades de gênero na educação e melhorar o acesso de mulheres, adolescentes e outros grupos marginalizados aos serviços de saúde. No entanto, em quase todas as áreas da sociedade a discriminação persiste. A sexual é latente. Pelo menos 500 milhões de mulheres são analfabetas e, no campo político, 16% dos assentos parlamentares são ocupados por elas, um aumento ínfimo de 4% desde 1990.

Situação no Brasil

O Relatório do UNFPA destaca o trabalho das ONGs brasileiras na redução das disparidades entre os sexos e na luta contra a mentalidade machista. Quanto ao desempenho governamental, vale destacar, inicialmente, que os programas sociais brasileiros vêm, recorrentemente, tendo cortes brutais em seus orçamentos, com conseqüente baixa em suas execuções financeiras. Embora atingida por essa política econômica equivocada, pode-se contabilizar como avanço no combate à discriminação de gêneros, a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que realizou em 2004 a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, mobilizando o número expressivo de 120 mil mulheres que traçaram as diretrizes da Política Nacional para as Mulheres.

Fazendo uma leitura dessas diretrizes em relação à Plataforma Política das Mulheres do PPS, em linhas gerais podemos nos deter nas seguintes reflexões: no quesito mulher, política e poder há necessidade de se consolidar e de se implementar as conquistas, com as mulheres inseridas nas ações do Estado, reconhecidas como sujeitos de direitos e como sujeitos políticos, tendo como conseqüência maior acesso e participação nos espaços de poder, fator essencial para a democratização do Estado e da sociedade.

Quanto às relações de gênero e desigualdade, compreendendo como se constituem as relações entre homens e mulheres face à distribuição de poder, importa analisar e combater o acesso desigual a bens e serviços, a oportunidades e direitos por parte de homens e de mulheres. Significa compreender como o gênero é um dos eixos estruturantes da desigualdade social no Brasil e em todo o mundo.

As Nações Unidas definem violência contra a mulher como: "Qualquer ato de violência baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimentos e danos físicos, sexuais e psicológicos da mulher; inclusive ameaças de tais atos, coerção e privação da liberdade seja na vida pública ou privada." A violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e é um sério problema de saúde pública. Há mais de três décadas, os movimentos de mulheres vêm denunciando, sistematicamente, esta modalidade de violência sem que se tenha obtido avanços significativos em seu enfrentamento. Algumas iniciativas pioneiras e interessantes foram desencadeadas no Brasil e precisam de divulgação e apoio.

Há várias décadas, as mulheres vêm tendo uma trajetória quase silenciosa no tocante à mudança do seu modo de agir e pensar. Neste mundo globalizado não é mais aceitável desconsiderar fatos que alterem sensivelmente o caminho da sociedade. Uma importante alteração tem ocorrido no campo do trabalho da mulher brasileira. A ascensão da mulher e a evolução dos seus papéis na sociedade merecem especial atenção.

O Relatório do UNFPA revela que a educação da mulher é uma das medidas importantes para reduzir pobreza. Atualmente, cerca de 600 milhões de mulheres em todo o mundo são analfabetas em comparação com 320 milhões de homens na mesma situação. Nossas atuais diretrizes prevêem identificar e atuar com ações afirmativas nas condições sociais que impedem segmentos de mulheres de se alfabetizarem, adequando programas educacionais às necessidades das mulheres.

Inúmeros problemas são encontrados na área da saúde, como atendimento precário e desumano, falta de recursos materiais e ausência de atendimento específico e especializado para as mulheres. O necessário é efetivamente garantir que o Estado cumpra os princípios e diretrizes da política nacional de atenção à saúde integral da mulher, conforme os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Os meios de comunicação devem e podem servir para promover a igualdade de gênero. Um código de ética para os meios de comunicação de massa pode coibir e punir excessos no que diz respeito à violência, racismo, sexismo, pornografia e outros. Além disso, é necessário monitorar os meios de comunicação de massa visando diagnosticar a qualidade da programação na perspectiva de gênero, raça, etnia, apontando lacunas e insuficiências.


Trabalhando com medidas estruturantes

Registre-se o denominado Programa H, pioneiro no Brasil, que treina profissionais de saúde e educação para trabalhar com grupos de rapazes na prevenção da violência, paternidade, saúde sexual e reprodutiva.

Importante ressaltar que as palestras levam à reflexão sobre noções tradicionais de masculinidade e a adoção de atitudes de igualdade entre os gêneros. Com o apoio do UNFPA, este programa está sendo realizado em Costa Rica, Honduras, Nicarágua e Panamá e se expande para países da África e da Ásia.

O Instituto Promundo, no Rio de Janeiro, é um exemplo pela excelência de seu trabalho, reconhecido pelo próprio UNFPA. Criado em 1997, para ajudar crianças órfãs da Aids, o Instituto alargou suas atividades em 1998 com a constatação do aumento do número de crianças que tiveram a mãe assassinada pelo pai. Ao entrar em contato com outras ONGs, implementaram o Programa H na perspectiva de usar tecnologias sociais para mudar atitudes de comportamento por parte dos homens.


Por onde passam nossas responsabilidades?

Para mudar o país e a vida de nossas mulheres, precisamos combater, com firmeza e sem vacilações, a desigualdade, o autoritarismo e a hierarquização históricas da sociedade brasileira. Não como uma conseqüência do crescimento econômico, mas, ao revés, como impulsionador de um desenvolvimento social, includente e sustentável.

Tal combate, reiteramos, deve ser prioridade do Estado democrático, assegurando políticas sociais universais e ampliando a cobertura dos serviços públicos de saúde, educação, saneamento básico e moradia. O país precisa fazer muito, também, no que toca à inserção no mercado de trabalho e na vida política, além de reduzir sensivelmente a violência sexual e doméstica.

Neste sentido, é necessária muita atenção não somente aos problemas específicos, mas, fundamentalmente, àqueles mecanismos que trabalham a igualdade. Igualdade entendida não somente em relação à distribuição dos bens, dos direitos e das obrigações, como também em relação à participação das mulheres enquanto sujeitos sociais na determinação das regras que normatizam a sociedade.

A superação das desigualdades de gênero passa por políticas concretas que propiciem o empoderamento e a auto-sustentação das mulheres, alterem a divisão sexual do trabalho, afirmem o exercício de direitos reprodutivos e sexuais, lutem contra toda espécie de violência e discriminação, em especial a violência sexual, a doméstica e a por orientação sexual. São necessárias políticas para promover a independência econômica das mulheres, incluindo o emprego, combatendo as causas de feminização da pobreza e garantindo a igualdade de acesso para todas as mulheres aos recursos produtivos, às oportunidades e aos serviços públicos.

Diante desse quadro, faz-se necessário formular e desenvolver a implantação de políticas públicas que possam afirmar a igualdade de direitos e a cidadania das mulheres, mediante o enfrentamento das desigualdades e discriminações sociais, em especial as de gênero.

Uma das desigualdades estruturais de difícil superação e que põe em risco a questão da legitimidade da democracia – é a ausência das mulheres nos espaços de poder. Não se muda nada, se as mulheres não estiverem participando de todas as políticas públicas, e se não estiverem presentes nas esferas importantes do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Será que um partido político promove mudanças se as mulheres não estiverem participando da elaboração de todas as suas políticas?

Será que um partido político promove mudanças se não afirmar a igualdade de direitos e a cidadania das mulheres?


*"Se me deixam falar..." foi um título inspirado numa fala de Domitila Barros Barrios de Chungara – aos 65 anos, ainda fiel militante da Central Operária Boliviana, criadora da Escola Móvel, cujo currículo escapa deliberadamente às fragmentações disciplinares, suas convicções se dirigem para a construção de uma sociedade justa e pacificada, rubricada pela ética da solidariedade, pela defesa da natureza, pela redução do consumo predatório. Suas inspirações trazem a marca da dupla exploração da condição feminina, da sabedoria da idade. Emitidas de seu ‘castelo’, de sua casinha de um bairro popular de Cochabamba, as palavras de Domitila ressoam com a boa utopia que algum dia ainda veremos realizar. (http://www.redemulher.org.br)

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