domingo, 12 de julho de 2009

REFLEXÕES SOBRE PROSTITUIÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE [1]

Almira Rodrigues[2]

Resumo: O presente texto visa a contribuir para uma reflexão sobre a prostituição na contemporaneidade, a partir de um diálogo com base nas perspectivas sociológica, psicanalítica e política. A autora desenvolve uma caracterização da compra e venda de serviços sexuais como um fenômeno singular e marcado pelas condições de gênero e de classe social. Trata da especificidade da prostituição como uma modalidade de relação afetivo-sexual, distinta das relações amorosas e eróticas não comercializadas e das relações de violência sexual. Com base em Sigmund Freud e Melanie Klein reflete sobre psicosexualidade e mecanismos psíquicos de sujeitos frente à comercialização das práticas sexuais. Por fim, considera as/os profissionais do sexo enquanto sujeitos políticos, cuja construção é (im)pulsionada pelas vivências sexuais e existenciais de marginalização e discriminação social.

Palavras chaves: prostituição, serviços sexuais, profissionais do sexo, relações afetivo-sexuais, mecanismos psíquicos.

Inicialmente é importante explicitar que este texto constitui um diálogo e uma articulação de perspectivas de cunho sociológico, psicanalítico e político. Nesse sentido, busco uma abordagem plural e aberta sobre relações afetivo-sexuais, processos psíquicos e projeto político acerca do fenômeno da prostituição. Os significados que perpassam tais acontecimentos são múltiplos e o meu objetivo é dar uma contribuição ao debate. Esta consideração torna-se mais expressiva se constatarmos que os significados não estão prontos, mas vão sendo construídos, solo e coletivamente, isto é, estão sempre em formação e transformação. Por fim, ressalto que se alguns significados ganham corpo e compartilhamento social, outros são próprios a cada sujeito com seu especial talento para criar seus significados e pô-los em circulação. [3]

1. Aproximações iniciais
Podemos começar nossa reflexão perguntando-nos por que o tema da prostituição é cercado de tantas suscetibilidades. Sabemos que esta discussão está marcada por visões moralistas e religiosas, que condenam a prática e particularmente as/os profissionais do sexo. Esta postura impede um aprofundamento do tema e confronta-se com uma perspectiva laica que vem se afirmando ao longo do processo civilizatório. Apesar disso, o embate entre as perspectivas laica e religiosa continua na ordem do dia e transparece nas polêmicas sobre o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por casais homossexuais, as cirurgias de mudança de sexo, as técnicas de reprodução humana assistida, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia passiva e ativa.

O fenômeno que estamos analisando, a compra e venda de serviços sexuais na contemporaneidade, envolve adultos, a partir de suas próprias decisões pessoais, implicando a assunção de responsabilidades, com seus ganhos e perdas. A prostituição não é legalizada nem criminalizada na legislação brasileira; considerada crime é a prática de exploração da prostituição por terceiros, intermediários e estabelecimentos comerciais (lenocínio).

É necessário distinguir a comercialização de serviços sexuais, envolvendo adultos como compradores e vendedores, de dois outros fenômenos sociais, ainda que possam estar entrelaçados em situações específicas. São eles: a exploração/abuso sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de mulheres/trabalho sexual escravo. Estes fenômenos estão cada vez mais visibilizados nas sociedades e são radicalmente diferentes da prostituição, por envolverem crianças e adolescentes - seres em formação e desenvolvimento biológico, psíquico e social -, e mulheres forçadas a trabalhar, sob ameaça e cárcere privado. As partes envolvidas em ambos os casos (crianças/adolescentes e trabalhadoras forçadas) são integralmente vulneráveis e se inserem em relações de poder constitutivamente assimétricas, de dominação e exploração, sendo ambos considerados crimes no ordenamento jurídico brasileiro.

Feita esta caracterização preliminar, destacamos que a comercialização dos serviços sexuais apresenta importantes marcas de sexo/gênero. Historicamente, as mulheres oferecem esses serviços e os homens os compram. Embora esta seja a equação social típica é importante considerar que mulheres também compram serviços sexuais (ainda que seja um fenômeno bem menos expressivo) e homens também vendem serviços sexuais, basicamente para outros homens, fenômeno em franca expansão nas sociedades ocidentais. Constata-se, concomitantemente, que a homossexualidade masculina, por muito tempo restrita a contextos de prostituição, tem adentrado de forma significativa o contexto das relações amorosas e das relações eróticas não comercializadas nas últimas décadas.

Na cultura patriarcal as representações e práticas sociais são fortemente marcadas pelo gênero e no âmbito da sexualidade as mulheres são socializadas para “conter” suas pulsões sexuais e para “liberá-las” quando conectadas a uma “história de amor”. Nessa medida, essa cultura poderia contribuir para explicar a pouca expressão de mulheres como clientes de serviços sexuais e a “transgressão” das mulheres enquanto profissionais do sexo. Os homens, por sua vez, são estimulados a vivenciar sua virilidade, no imaginário social fortemente associada ao “escoamento” de suas pulsões sexuais que podem exercer seja na posição de clientes seja na de prestadores de serviços sexuais.

Outra dimensão a considerar diz respeito à condição de classe e hierarquia dos serviços prestados. Reproduzindo a lógica de mercado, existem serviços e clientes de tipo A, B, C, D e E. Os espaços de comercialização do sexo expressam estas possibilidades: residências, hotéis, motéis, boates, bares, ruas, rodovias. Em tese, quanto maior o poder econômico de cada parte (profissional do sexo e cliente), maior a autonomia e a capacidade de negociação de decisões e de práticas sexuais.

Embora certa delimitação do fenômeno seja fundamental para se avançar nas reflexões é importante pensar em outros significados do termo prostituição, para além de um trabalho e profissão. No imaginário e nas representações sociais, a nomeação de putas/prostitutas é utilizada para mulheres que vivem sua sexualidade de forma livre, com múltiplos parceiros e/ou que dissociam amor e sexo. Em última instância, a nomeação tem a ver com o exercício da sexualidade das mulheres, diferentemente de um padrão social esperado e cultivado para elas, qual seja, o padrão conjugal e monogâmico. O exercício da sexualidade separado de uma história de amor é considerado majoritariamente como um território masculino, o que significa o controle social da sexualidade das mulheres, inclusive ou sobretudo, para garantir a segurança da linhagem paterna. Estes sentidos, embora passíveis de algumas transformações e podendo ser relativizados, parecem ser ainda predominantes na contemporaneidade.

2. Relação sexual comercializada como um tipo de relação afetivo-sexual
Considerando um sentido estreito de sexualidade, enquanto interação e prática sexual, e um sentido amplo de afetividade, envolvendo toda e qualquer emoção e sentimento, as relações sexuais comercializadas constituem uma das três formas básicas de relações afetivo-sexuais. São elas: a) relações afetivo-sexuais de reciprocidade e de iguais posições, onde os sujeitos se escolhem mutuamente como objetos amorosos e eróticos para vivenciar um projeto amoroso ou um encontro erótico sem continuidade e sem aprofundamento; b) relações afetivo-sexuais comercializadas, pressupondo no mínimo duas posições, compradores e vendedores de serviços sexuais, além da possibilidade de intermediários; e c) relações afetivo-sexuais de força (estupro e atentado violento ao pudor) envolvendo agressores e vítimas, estas majoritariamente mulheres. [4]

Com base em uma visão ética, de respeito à autonomia e direito de escolha dos sujeitos, as relações de força constituem uma violação radical dos direitos humanos e, especificamente, dos direitos sexuais. Em termos psicanalíticos, os violadores/agressores são perversos à medida que coisificam o outro, e, pela força, o submete à sua satisfação e poder. Apesar de esta prática ser criminalizada por legislação específica no Código Penal brasileiro, são reduzidos os casos em que os agressores são efetivamente punidos e em que as vítimas têm assistência médica e psicológica adequadas pelo sistema público de saúde.

Por outro lado, a reciprocidade nas relações de livre escolha não garante relações de respeito e de integridade das pessoas envolvidas. Assim é que existe legislação de proteção às relações de namoro, coabitação e casamento, mediante o combate à violência doméstica e familiar[5]. Na sociedade brasileira, e em larga escala mundial, é comum a ocorrência de maus tratos, espancamentos e ameaças às parceiras, praticados pelos seus parceiros, sendo recorrente o assassinato de mulheres por (ex) namorados, (ex) companheiros e (ex) maridos por elas decidirem romper a relação que iniciaram de comum acordo em tempos passados.

Considerando as três modalidades, as relações afetivo-sexuais comercializadas estão a descoberto, à exceção do dispositivo no Código Penal criminalizando a exploração e a manutenção de comércio sexual por terceiros. No entanto, os intermediários e os estabelecimentos onde se pratica a comercialização de serviços sexuais funcionam amplamente, fazendo uso de estratégias clandestinas, o que acaba favorecendo o funcionamento de negócios escusos e as práticas de corrupção ativa e passiva.

A partir de uma perspectiva psicanalítica, o que podemos pensar sobre as relações afetivo-sexuais, comercializadas ou não, enquanto relações em que vigoram “escolhas e acordos”, independentemente de sua natureza e qualidade?

No que se refere às relações recíprocas e de iguais posições – relações amorosas e eróticas – podemos constatar que embora apontem para uma simetria de posições, ambos são sujeitos e objetos amorosos e eróticos, trata-se de uma simetria formal. Os sujeitos envolvidos não dispõem de iguais recursos psíquicos, intelectuais, financeiros e nem sempre ou quase nunca negociam direitos, interesses e necessidades em igualdade de condições. Assim, tais relações podem configurar-se como relações de dominação, com comprometimento do diálogo e com predomínio de uma parte sobre a outra, seja recorrentemente ou alternadamente.

Quanto à escolha do objeto amoroso e erótico, a psicanálise nos diz que esta não é uma escolha racional, desconstruindo a concepção do “eu” como unificado, estável e livre de conflitos; mas sim que é uma escolha permeada de fixações, traumas, recalques, identificações. Não só as escolhas amorosas e eróticas seguem este modelo, mas as decisões e escolhas existenciais de uma forma geral. Sigmund Freud enfrentou fortes resistências pela construção da teoria do inconsciente que explica que a maior parte da nossa vida psíquica transcorre para além de nossa consciência e controle. Elaborou a idéia de que o funcionamento psíquico ocorre sob os signos do princípio do prazer e do princípio da realidade e que cada um se defronta, desde o nascimento, com arranjos singulares de suas pulsões de vida e pulsões de morte.

Freud construiu uma teoria da sexualidade como expressão complexa e conflitiva de um psiquismo em desenvolvimento. Afirma que meninos e meninas têm desejos e fantasias sexuais desde o nascimento. No texto Sobre una degradación general de la vida erótica (1912) que integra as Aportaciones a la Psicologia de la Vida Erótica (1910-1912) Freud fala de uma impotência psíquica para o amor. Afirma que o comportamento amoroso normal pressupõe a união da corrente afetiva e da corrente sensual, ressaltando, no entanto, que são poucas as pessoas que conseguem uni-las. Nos homens, a corrente sensual procura apenas objetos que não rememorem as imagens incestuosas proibidas – como defesa, eles se utilizam da depreciação do objeto sexual e de uma supervalorização do objeto incestuoso e seus representantes. Já as mulheres, devido a uma longa contenção da sexualidade e de seu anseio de sensualidade em fantasia, ficam incapazes de desfazer a conexão entre a atividade sensual e a proibição, sendo a frigidez a expressão dessa impotência psíquica.

Passado um século dessas considerações, que mudanças podemos constatar no campo da expressão amorosa e erótica dos sujeitos, mulheres e homens? Tudo indica que uma afirmação da diversidade sexual, a autonomização da sexualidade frente a outras dimensões da existência, além de uma maior publicização e politização de expressões amorosas e eróticas. Verificam-se, também, movimentos de expansão das fantasias sexuais e mesmo de sua atuação. Parceiros exploram juntos suas sexualidades, atentando mais para a satisfação de ambos, e a sensualidade das mulheres é objeto de intensa exploração na sociedade. A contemporaneidade favorece a expansão das fantasias sexuais, mediante a rede mundial de computadores, o comércio de produtos em sex shoppings, e a cobertura da mídia que estimulam a constituição de sujeitos de desejo próprio e, paradoxalmente, formatam sujeitos de desejo alheio.

Quanto às relações afetivo-sexuais comercializadas serão analisadas em tópico específico, a seguir.

3. Comercialização de serviços sexuais - transação profissionalizada e especializada na realização de desejos, necessidades e fantasias sexuais?
A comercialização de serviços sexuais abre um campo para a realização de fantasias e para a satisfação das necessidades e desejos sexuais do cliente, por parte das/dos profissionais do sexo: a fantasia é a de que o pagamento por tais serviços assegura a satisfação sexual total. A satisfação em pauta, exclusiva ou prioritária, é a do cliente. No entanto, uma aproximação das relações comercializadas com as relações sexuais não comercializadas pode ser pensada. As fantasias de plena gratificação sexual também circulam nas relações amorosas e eróticas, sendo que nestas a moeda de troca dos sujeitos amorosos e eróticos é mais equivalente estando em questão a satisfação de ambos. No entanto, é fundamental destacar que ambas as modalidades podem ser vivenciadas como espaços privilegiados de poder - enquanto produção do prazer e do gozo -, de preenchimento da falta constitutiva do existir e uma forma eficaz de tamponar temporariamente a angústia.

Podemos nos perguntar que outros processos psíquicos podem se atualizar no contexto específico das relações afetivo-sexuais comercializadas, relações socialmente discriminadas e marginalizadas. Embora seja uma prática social comum, a prostituição tende a ser negada. Sua existência e diversidade são invisibilizadas como atestam a inexistência de regulamentação da prática. Quando reconhecida, constata-se uma cisão mediante a depreciação das/dos profissionais do sexo e a proteção dos clientes, via anonimato. Não se fala de quem faz uso de serviços sexuais, apenas de quem os vende. Quem faz uso são clientes, uma nomeação genérica que se adequa a quem compra quaisquer bens e serviços. Ou seja, a depreciação serve para quem vende serviços sexuais, mas não para quem os compra.

Por fim, as representações sociais que depreciam e desqualificam as/os profissionais do sexo podem ser lidas como expressão de mecanismos de projeção. Os sujeitos projetam para as/os profissionais do sexo o que sentem como tendo de sujo, podre e destrutivo, liberando-se de se defrontarem com determinados aspectos de si próprios.

Nesse sentido, as/os profissionais do sexo constituem um campo não apenas para as necessidades e fantasias sexuais do outro, mas também um “saco de pancada” para a sociedade e, em especial, para os sujeitos com rígidos padrões morais, religiosos e ideológicos, que propõem a exclusão e o aniquilamento de “partes” que entendem corrompidas, perturbadas e perturbadoras do contexto social. Assim, quanto mais rígidos os sujeitos, mais precisarão fazer uso de mecanismos de defesa de feição esquizo-paranóide: negação, cisão, projeção (Klein, 1936, 1946)[6]. E, traçando interconexões, podemos pensar que quanto mais rígida uma sociedade, mais seus indivíduos farão uso desses mecanismos para se protegerem e ocultarem seus conflitos e desconfortos.

Por outro lado, quanto mais as/os profissionais do sexo introjetarem as representações dominantes acerca de sua condição profissional, de escória social expressa no xingamento de maior gravidade “filho da puta”, mais ficam destruídas internamente, vivenciando profundos conflitos e sofrimentos psíquicos.

No que tange às motivações para a venda de serviços sexuais, a dimensão econômica é concreta tanto para quem sustenta necessidades básicas e vitais, quanto para quem sustenta padrões de vida elevados. Esta diferenciação se mantém historicamente e tende a ser forte elemento de julgamento social das/dos profissionais do sexo: socialmente é menos reprovada a prestação de serviços sexuais como forma de garantia da sobrevivência básica, do que como forma de acesso a um alto padrão de vida. Isso alude à hipocrisia e ao absolutismo à medida que os sujeitos se sentem no direito de julgar em que condições “autorizam” os acontecimentos na vida dos outros.
Seguindo a premissa de que nossas escolhas não são plenamente racionais, podemos levantar a questão: e o que tem a mais, ou junto com as motivações financeiras na “escolha” de vender serviços sexuais? Entendo não ser possível avançar nesse rumo, pois não creio em um psiquismo específico das/dos profissionais do sexo. Suas histórias são singulares e individuais: abandono, frustrações, violências, prazeres, idealizações e tudo o mais que constitui a vida de seres humanos.

E quanto às motivações para a compra de serviços sexuais? Pode-se pensar que estes sujeitos (que têm permissão interna para a compra desses serviços) não têm outras formas de vivenciar relações sexuais além destas ou que têm satisfação exatamente em relações sexuais comercializadas. Para além dessas evidências, outros significados também têm que ser buscados nas histórias singulares de cada sujeito, que tem nessa forma uma possibilidade de gratificação assegurada.

4. Prestação de serviços sexuais como campo profissional e de construção de sujeitos políticos
A comercialização de serviços sexuais apresenta diferentes formas de institucionalização conforme os países. Existem países em que a prostituição é considerada crime, a exemplo dos Estados Unidos da América; outros que legalizaram a prática, como Suécia, Holanda, Alemanha, Dinamarca e Noruega. Em muitos outros países a legislação não legaliza nem criminaliza a prostituição, a exemplo do Brasil e da Espanha, abrindo flancos para abusos de toda ordem praticados contra as/os profissionais do sexo, por parte de clientes, de intermediários e de policiais (violência física, psíquica, sexual e extorsão).

É interessante constatar que os países nórdicos são os que mais avançaram na discussão e legalização da prostituição. Na Suécia, desde 1982 a prostituição é considerada uma atividade comercial, sendo que em 1999 foi aprovada uma legislação proibindo a compra de serviços sexuais (mas não a venda) como forma de reduzir a comercialização. Na Holanda, desde 2000 a prostituição é considerada um trabalho com direito a seguridade social; os bordéis são legalizados e seus proprietários pagam impostos e o seguro social das prostitutas. Na Alemanha, a prostituição é legalizada desde 2002 e as profissionais têm direitos trabalhistas. Na Dinamarca as prostitutas pagam impostos, mas não têm direito a assistência médica nem a seguro desemprego. Na Noruega, desde janeiro de 2009, vem sendo aplicada uma lei como a sueca. [7]
No Brasil, existe uma proposição legislativa que tramita na Câmara dos Deputados visando a legalização e regulamentação da atividade de “Profissional do Sexo”: prevê o pagamento “pela prestação de serviços de natureza sexual”; e propõe a descriminalização da intermediação e da manutenção de estabelecimentos de exploração do sexo.[8] O projeto conta com o apoio da Rede Brasileira de Prostitutas, criada no I Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, no Rio de Janeiro. [9]

A Rede, na Carta de Princípios divulgada em seu IV Encontro, realizado em fins de 2008 no Rio de Janeiro, defende a prostituição como profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos; repudia a criação e existência de zonas de confinamento, o controle sanitário, a vitimização, a exploração, a discriminação e o preconceito, e defende o trabalho sexual como um direito sexual. Desde 1989, a Rede realiza parcerias com o Programa Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde, que reconhece o seu importante papel na política pública de prevenção e combate ao vírus e à doença. Mediante a atuação da Rede, a atividade de profissional do sexo passou a ser considerada na Classificação Brasileira de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego.

A missão da Rede, enquanto sujeito político, é a de “Promover a articulação política do movimento organizado de prostitutas e o fortalecimento da identidade profissional da categoria, visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da discriminação e a melhoria da qualidade de vida na sociedade” (conforme consta da página inicial do site http://www.redeprostitutas.org.br/). Em tese, as/os profissionais que politizam seu cotidiano têm melhores condições e recursos para lidar com seus conflitos, para construir suas identidades e se inserir de forma digna e produtiva na sociedade.

Fica uma importante questão a ser colocada: as relações de compra e venda de serviços sexuais são constitutivamente relações assimétricas de poder, relações perversas, de coisificação e instrumentalização, ou podem assumir feições simétricas em que as partes se respeitem mutuamente e realizem acordos, com base em interesses e oportunidades? Penso que a comercialização de serviços sexuais não exclui a possibilidade de construção de relações mais igualitárias e de respeito. Mas esta é uma construção a dois, além de abranger o reconhecimento e a proteção de um coletivo muito maior, Estado e sociedade. Esta é a luta das entidades de profissionais do sexo em todo o mundo, e no Brasil, o movimento tem acumulado ganhos nas últimas duas décadas embora ainda tenha muitos desafios pela frente.

5. Considerações finais
A partir das reflexões realizadas, podemos constatar a especificidade das relações afetivo-sexuais comercializadas bem como do projeto político das organizações de profissionais do sexo. Ou seja, em uma perspectiva sociológica e política essas relações e esse projeto se afirmam, buscando, respectivamente, um reconhecimento social e uma condição de cidadania. Como contraponto, realizamos uma desconstrução da idéia de psiquismos específicos de profissionais do sexo e de compradores de serviços sexuais. Embora descartemos essa idéia privilegiando a história singular de cada um, podemos evidenciar alguns processos psíquicos vivenciados pelos sujeitos frente ao fenômeno da prostituição.

Neste texto evidenciamos que as relações de força e de violência sexual são as únicas constitutivamente perversas, por sua unilateralidade e impossibilidade de acordo e de troca em qualquer sentido. Já as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas podem ou não assumir um caráter perverso, dependendo de como os sujeitos envolvidos se relacionam.
Outros paralelos podem ser traçados entre as relações sexuais comercializadas e as não comercializadas. A comercialização de serviços sexuais favorece experiências parciais e cindidas, para ambas as partes envolvidas (profissionais do sexo e clientes), tanto no sentido da cisão corpo e psiquismo, quanto da cisão sexualidade e afetividade. Esta tendência parece ser bem expressiva por sustentar-se na mercantilização, sendo que ambas as partes têm suas vivências existenciais para além da compra e venda de serviços sexuais. Já as relações não comercializadas sob a feição de encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento, se por um lado também apontam para essa tendência de parcialidade e cisão, por outro, apontam igualmente para uma equivalência entre os sujeitos que compartilham seus desejos e prazeres instantâneos.
É interessante observar que se ambas as situações – relações sexuais comercializadas e encontros eróticos sem continuidade e sem aprofundamento - podem favorecer vivências parciais e cindidas, elas não impedem, entretanto, a possibilidade de desenvolvimento de um vínculo amoroso entre as partes envolvidas, ou uma vivência mais integrada entre corpo e psiquismo e entre afetividade e sexualidade, por uma ou ambas as partes. Porque, o que conta, fundamentalmente, é como cada sujeito, seja na posição de profissional do sexo, de cliente e de sujeito erótico, costura suas vivências, memórias, desejos, fantasias, projetos.

O oposto de tais situações, em tese, são as relações amorosas, em que os sujeitos buscam a continuidade e o aprofundamento do vínculo, mediante a construção de projetos de futuro. Estas relações tendem a acolher outros mecanismos psíquicos, como o fusionamento e o medo da perda do objeto amoroso.

Podemos nos perguntar, no entanto, o que significa a inexistência de uma lei social que regulamente a compra e venda de serviços sexuais. Este fato alude a um território sem lei, onde vigora a lei do mais forte, algo muito primitivo, selvagem. Um território onde as pulsões libidinais e agressivas têm livre curso, sem limites e sem cuidados e em que não há um terceiro a quem recorrer quando do descumprimento de acordos e da efetivação de abusos de todas as ordens. O terceiro neste caso, simbolizado pelo Estado e pela Justiça, também cumpre uma função especial, de mediação e de proteção às partes envolvidas; e para que cumpra este papel precisa estar investido de um poder efetivamente público e não privado. Essa linha de reflexão merece investigações e possibilita aprofundar as equivalências e os trânsitos entre as condições sociais, psíquicas e políticas.

Outra questão substantiva com a qual concluo e paralelamente deixo em aberto nossas reflexões é a seguinte: podemos traçar algum paralelo entre a ação política do movimento de profissionais do sexo e o trabalho psicanalítico, na medida em que ambos propõem a superação de processos de vitimização e a assunção de escolhas e de responsabilidades, com ganhos e perdas? Creio que sim, que podemos traçar estes paralelos. Em uma perspectiva ética, ação política e trabalho psicanalítico possibilitam o desvelamento e a ruptura com processos de heteronomia e de submissão; e a construção de sujeitos autônomos com liberdade de escolha (a possível em contextos de realidade), a partir do reconhecimento de desejos e projetos, próprios e alheios. Mas, estes cenários são apenas possibilidades e não garantias. A distinção, no entanto, substantiva e decisiva, fica por conta de que apenas a psicanálise pode promover o desvelamento de ganhos e perdas inconscientes em nossas práticas cotidianas e em nossas escolhas existenciais.

Reflexiones sobre la Prostitución en la contemporaneidad
Resumen: El presente texto intenta contribuir a la reflexión sobre la prostitución en la contemporaneidad, a partir de un diálogo basado en la triple perspectiva sociológica, psicoanalítica e política. La autora desarrolla una caracterización de la compra e venta de servicios sexuales como un fenómeno sui generis e marcado por las condiciones de género y de clase social. Trata de la especificidad de la prostitución como una modalidad de relación afectivo-sexual, distinta de las relaciones amorosas y eróticas no comercializadas y de las relaciones de violencia sexual. Utilizando el enfoque de Sigmund Freud e Melanie Klein reflexiona sobre psico-sexualidad y mecanismos psíquicos frente a la comercialización de las prácticas sexuales. Finalmente, considera las/los profesionales del sexo como sujetos políticos, cuya construcción es impulsada por las experiencias sexuales e existenciales de marginalización y discriminación social.

Palabras claves: prostitución, servicios sexuales, profesionales del sexo, relaciones afectivo-sexuales, mecanismos psíquicos.


Reflections about the Prostitution in the Contemporaneity
Abstract: This article intends to contribute to the discussion about the prostitution in the contemporaneity, through the dialogue between the sociological, psychoanalytical and political perspectives. The author analyses the purchase and sale of sexual services as a singular phenomenon, marked by gender and the social conditions. She examines the prostitution specificity as a form of affection and sexual relationships, different from no commercialized lovers and erotic relationships, and from sexual violent relationships. Based on the concepts of Sigmund Freud and Melanie Klein, she analyses about psychosexuality and psychic mechanisms face the commercialized sexual practices. Finally, she takes into consideration the sexual professionals as a political group, constituted by the sexual and existential experiences of social marginalization and discrimination.

Keywords: prostitution, sexual services, sex professional, affection and sexual relationships, psychic mechanism.



REFERÊNCIAS
1. FREUD, Sigmund. Sobre una degradación general de la vida erótica (1912). Aportaciones a la Psicología de la Vida Erótica (1910-1912). Obras Completas, Vol. I. Editorial Biblioteca Nueva: Madrid. 1948.
2. KLEIN, Melanie. Contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos (1934). In: Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32)
3. _____________. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. ( 1946). In: Melanie Klein: psicologia. Orgs. Fábio A. Herrmann e Amazonas Alves Lima. São Paulo: Ática, 1982. (Grandes Cientistas Sociais; 32)
4. RODRIGUES, Almira. Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso. 1992. 144p. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF.
5. __________________. Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas. 1998. 272p. Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília – UnB, DF.



NOTAS

[1] A elaboração do presente texto foi motivada pelo convite para debater o vídeo “A Saga das Mulheres Candangas”, de Denise Caputo, sobre a prostituição de mulheres na construção de Brasília. O debate foi promovido pelo Museu Vivo da Memória Candanga, em Brasília, em 21/03/2009. Este evento, por sua vez, mobilizou a realização de um debate sobre Prostituição na Contemporaneidade, organizado pela Comissão de Comunidade e Cultura da Sociedade de Psicanálise de Brasília, em 19/03/2009. As reflexões apresentadas pela autora foram ampliadas e aprofundadas a partir dos debates e das discussões realizadas com colegas, aos quais agradece.

[2] Socióloga, Mestre e Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e Analista em Formação pelo Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB), filiada à Federação Brasileira de Psicanálise (FEBRASPI), à Federación Psicoanalítica de América Latina (FEPAL), e à Internacional Psychoanalytical Association (IPA).

[3] Utilizo deliberadamente várias posições de fala: a primeira pessoa do singular para referir-me a compreensões muito pessoais; a primeira pessoa do plural, quando entendo poder compartilhar as idéias com leitores, e, finalmente, utilizo o pronome indefinido para contextos e movimentos mais gerais.

[4] Desenvolvi esta classificação na minha Dissertação de Mestrado em Sociologia intitulada Relações amorosas: uma incursão sociológica no processo amoroso (1992) e na minha Tese de Doutorado, também em Sociologia, intitulada Cidadania nas relações afetivo-sexuais no Brasil contemporâneo: uma questão de políticas públicas (1998).

[5] A Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi aprovada em 2006, depois de mais de 30 anos de denúncias da violência contra as mulheres e da luta dos movimentos feministas e de mulheres por políticas públicas de prevenção e combate a violência doméstica e familiar na sociedade brasileira.

[6] Melanie Klein formula a idéia desses mecanismos como recursos primitivos do desenvolvimento psíquico. A elaboração da posição esquizo-paranóide possibilita a entrada na posição depressiva, em que se coloca a integração dos objetos bom e mau, a perda, a culpa e a reparação. Durante a vida, os sujeitos vivenciam flutuações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva.

[7] Ver entre outras notícias constantes de sites especializados a matéria “Prostitutas legalizadas, clientes clandestinos” (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2009/03/02/ult581u3071.jhtm).

[8] Este projeto foi apresentado pelo Deputado Fernando Gabeira, em 2003.

[9] A Rede Brasileira de Prostitutas (http://www.redeprostitutas.org.br/) congrega atualmente quase trinta organizações no País, integra a Red de Trabajadoras Sexuales de Latinoamerica y el Caribe (http://www.redtraxex.org.br/) e se articula com o movimento europeu e norte-americano. Uma de suas importantes referências é o jornal Beijo da Rua (http://www.beijodarua.com.br/)

.Almira Rodrigues
SHIS QI 09, Lote E, Bloco I, Sala 209
Centro Clínico do Lago, Lago Sul, Brasília-DF. CEP: 71.624-009
Fone: (61) 9296-2890 e (61) 3366-3385
almira.rodrigues@gmail.com

Nenhum comentário: